E os
“brancos” do candomblé’?
Date:
19/10/2017
A
intolerância religiosa, nos últimos vinte anos, aparece como um fenômeno
violento que se dirige às religiões africanas em diáspora no Brasil. A questão
é que o termo “intolerância religiosa”, embora pareça aglutinador, tem se
mostrado insuficiente para nomear a complexidade do sistema opressivo sobre as
crenças originalmente negras do país. Digo isso porque acredito que é passada a
hora de superar jargões e frases de efeito, já que podemos e devemos olhar para
nós e para os fatos com a densidade que merecem. A terceira pessoa do plural
refere-se aos religiosos, não só aos pesquisadores e estudantes, mas a todos
aqueles interessados em refletir sobre esta prática, principalmente os que são
identificados como os ‘brancos do candomblé’.
Por Yasmin
Rodrigues, do Flor de Dendê – Uma
aliança afro-sertaneja
Poderia escrever este texto
fazendo mea culpa sobre minha posição na hierarquia racial
brasileira, e que me mantém longe do genocídio que mata pretos no país. Poderia
também me declarar como mestiça (e é esse o argumento utilizado por muitas
pessoas brancas que se ofendem nos espaços de discussão acadêmica ou política
por serem brancas, não é verdade?), mas seria de grande desonestidade, já que,
até hoje, minha cor jamais foi uma questão.
Seria desonesto porque, ainda que
eu seja o resultado do processo de branqueamento – política pública em
andamento há cerca de 150 anos no Brasil, que fez com que a concentração de
melanina tendesse a diminuir das peles brasileiras – jamais saberei o que é discriminação
racial. Veja, sou de uma família que há décadas vem branqueando e que reúne, do
lado materno, até onde pudemos saber, prevalência negra e indígena e, do lado
paterno, uma genealogia bem definida, que remonta várias gerações, até hoje
conhecidas e constituídas no norte de Portugal.
Bem simbólico, não é? No entanto,
minha avó materna, apesar de negar sua negritude, era vista e apontada como
mulher negra. Há quem diga que minha mãe é pouca-tinta, mas eu sou
incontestavelmente branca (aos olhos da polícia, principalmente). A questão é
que o racismo, enquanto sistema estruturante das relações de poder no nosso
país, atua pela marca, de modo que é a cor da pele o que define se a
experiência será mais ou menos violenta por aqui.
Privilégios
Neste sentido, é preciso afirmar
que componho parte da população que fala por si e não se vê como parte de uma
raça. Ao meu ver, assumir este posicionamento ao falar sobre os ‘brancos do
candomblé’ é o nosso maior desafio. Certamente, é possível fazer com que
pessoas visivelmente brancas se reconheçam dessa forma e consigam expressar-se
declaradamente a partir de sua posição de poder e privilégios. Entendo que só
assim conseguiríamos deslocar o problema da dinâmica racial, considerando a
posição privilegiada que ocupo neste cenário. Bem, não tenho certeza se estou
apta a fazer esta provocação, no entanto, posso falar sobre meus pares e
consigo compreender e acessar nuances da performance social de pessoas brancas,
entre as quais, candomblecistas.
É fato que para alguns movimentos
que discutem e demandam sobre os direitos dos negros e negras, embora não seja
uma posição hegemônica desses movimentos e das disputas políticas que envolvem
religiosidade, “brancos no candomblé são abomináveis” e “Não deveriam existir”.
Esse é um discurso facilmente encontrado, principalmente nas redes sociais,
espaço onde a doutrina religiosa não funciona ou não garante que a interação se
dê sob as premissas estabelecidas nos terreiros.
Por outro lado, há diversos,
‘mais velhos’ e ‘mais novos’ que são socialmente identificados como ‘brancos do
candomblé’. Alguns desses se destacam por serem assíduos defensores da religião
(enquanto sistema de crença tradicional) e seus pares religiosos (enquanto
pessoas) de ataques discriminatórios nas ruas, nas redes sociais e até dentro
de suas famílias.
O fato é que, a partir do
movimento de ataque do setor neopentecostal e de defesa do setor
afrorreligioso, surgiram diversos grupos contra a intolerância
religiosa e a favor dos direitos dos religiosos de matriz africana. Na
esteira dessas disputas, militantes negros, em maioria, passaram a classificar
a violência direcionada aos cultos afro como ‘racismo religioso’ no intuito de
demarcar a origem da discriminação no racismo antinegro, indicando que as
religiões sofrem represália por serem originalmente negras. Pois bem, o que
venho tentando refletir e fico me perguntando: mesmo se tratando de “racismo
religioso”, não é possível que estejamos escamoteando a noção de corpo? De quem
é o corpo que sofre ‘racismo religioso’?
É aí que os ‘brancos do
candomblé’ entram, levantando a mão junto com os negros e batendo o pé em dizer
que é o corpo do ‘macumbeiro’ que sofre. Tenho cá minhas dúvidas. Penso que o
‘xis’ desta questão está em algo que para o Povo do Santo é simples: no
candomblé, nossa noção de corpo se estende também às nossas insígnias sagradas.
Junção
Desse modo, a roupa de ração, os
fios-de-conta, o contregun e todos os demais paramentos que indicam a qual
religião pertencemos, são também sagrados e partes indissociáveis do nosso
corpo – esses objetos se alimentam conosco, representam a nossa ligação direta
com o Orixá e nascem conosco quando renascemos. No entanto, no momento da
discriminação, são eles, os artefatos, e não o nosso corpo humano branco, os
alvos da discriminação.
Vou dar um exemplo: às sextas,
quando me visto de branco e coloco meu fio-de-conta no pescoço, é normal que o
lugar ao meu lado no ônibus demore um pouco mais a ser ocupado do que nos
outros dias. O fio-de-conta e a roupa branca – insígnias negras! -, causam
medo. Mas eu posso tirá-los e aí, a sociedade me vê como inofensiva. No
entanto, já há pesquisas no sentido de que pessoas negras (principalmente
homens) costumam ficar sozinhas ou são a última escolha para dividir a viagem
no transporte público. Nesse caso, como no primeiro, o que é negro causa medo,
repulsa. Só que para quem é negro não há alternativa: não há como se despir de
sua própria pele…
É por este motivo que quando
penso na discussão sobre os ataques dos neopentecostais aos terreiros país à
fora, não acho honesto que nós, ‘brancos de candomblé’, entremos à reboque em
uma leitura séria sobre racismo de origem por causa da escolha religiosa que
nos atravessa. A origem dos brancos, numa análise sobre as interações, não é
africana, muito menos melanodérmica (e ancestralidade e mestiçagem não são
questões colocadas aqui.
Trata-se do efeito que seu corpo
causa em outro corpo quando se vêem e como o outro te enxerga. E, vamos
combinar?, este ‘outro’ generalizado não enxerga o branco como originalmente
perigoso). E o racismo é antinegro. Antinegro. Pessoas brancas não sofrem
racismo de qualquer tipo, sequer o religioso. E isso não é negar trajetórias
brancas marcadas pela violência religiosa, mas admitir que esses corpos que
nascem blindados, em algum momento, vestiram-se de vulnerabilidade quando
colocaram sobre si símbolos tipicamente negros.
Os fios-de-conta, as roupas, o
pano de cabeça são negros, são geneticamente (no sentido da gênese) negros. E
não faz mal olhá-los assim, já que são vivos. Porém, penso que a reivindicação
desleixada, feita por ‘brancos do candomblé’, por uma opressão que habita vidas
brancas que acontece esporadicamente nos momentos de preceito religioso, tem
feito muito mal ao enfrentamento da violência religiosa que todos estamos
sofrendo.
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