Por que
tenho orgulho de ser um homem negro?
Date:
20/01/2018
Ainda que…
Ainda que
nos vejam através da lente do racismo, eu me orgulho de ser um homem negro;
apesar dos insultos, repulsa e da hipocrisia, eu me orgulho de ser um homem
negro; independente do medo, julgamentos morais e generalizações, eu me orgulho
de ser um homem negro.
Por Henrique
Restier da Costa Souza, do Justificando
Mesmo que nossas experiências
sejam desqualificadas em prol de slogans e palavras de ordem, eu me orgulho de
ser um homem negro.
Penso que ter esse orgulho seja
um dos principais pré-requisitos para reivindicarmos formas de masculinidades
negras que não estejam tuteladas pela masculinidade do homem branco, assim
como, é também uma possível consequência das próprias modalidades de
enfrentamento ao racismo e busca pelo autoconhecimento.
Ademais, ter orgulho do que
somos, é, na maioria das vezes, um caminho longo, árduo, porém libertador. Este
texto é pra todos nós homens negros: para o religioso ou ateu, para o mocinho e
o bandido, para o desempregado, sub-empregado ou bem empregado, para quem bateu
ou apanhou, para o de esquerda e de direita, os de “tinta fraca”, e os de
“tinta forte”, para o negão e para o neguinho, para o homem negro de qualquer
sexualidade e tantos outros que com toda sua riqueza não cabem aqui.
Moonlight/Reprodução
Minha escrita é para vocês e a
essência de tudo que tenho pra dizer é: tenham orgulho de serem homens negros.
Eu poderia falar da honra de sermos os primeiros
homens da espécie humana. Discursar sobre os grandes feitos das civilizações
africanas pelo mundo, invenções de cientistas, façanhas de atletas, das proezas
de valorosos homens negros através da história e de homens comuns que lutam
todos os dias pela sobrevivência. Tudo isso me enche de admiração e respeito,
mas o que me dá orgulho mesmo é o nosso papel vital na luta pela liberdade do
povo negro.
O homem negro é peça indispensável para a produção
de masculinidades não calcadas nos valores coloniais da branquitude, esse
potencial advém do nosso lugar social instável e perigoso na dinâmica entre
raça e gênero, o que quero dizer, é que, estar em uma sociedade patriarcal
supremacista branca, fazendo parte do segmento masculino-racial derrotado pela
barbárie do colonialismo europeu, não é um lugar que se queira estar.
Sem rodeios e ingenuidades: o patriarcado branco
não foi “inventado” para contemplar homens negros, indígenas, ou os
“não-brancos” em geral, mas sim para nossa domesticação e ruína. Como lidamos
com isso e que sugestões apresentar, é uma parte importante do que proponho
neste texto.
Aprendendo a ser um homem negro
Ninguém nasce sabendo o que é ser homem, isso se
aprende, basicamente, com outros homens, e são eles que validam nossa
masculinidade, é assim que nos tornamos homens. No entanto, a pergunta é: quem
define o que é homem? O homem branco. A pretensão de universalidade e
neutralidade produzida pela branquitude masculina empresta-lhe um poder
normativo sem igual, fazendo com que seja tomada como medida de (quase) todas
as coisas.
Vejamos o famoso homem desconstruído,
via de regra, é aquele indivíduo oriundo das classes médias, com educação
superior, sofisticação cultural, flexível quanto ao papel social masculino,
bem-sucedido na profissão, ideologicamente progressista (ciente de seus
privilégios, sensível às questões das “minorias”) e branco. Uma espécie de príncipe
encantado pós-moderno, o que apenas ratifica seu status social podendo negociar
algumas de suas prerrogativas patriarcais, sem alteração substancial na
dinâmica de poder, mantendo-se como modelo de masculinidade exemplar.
Assim, “algoz” e “redentor” se mesclam em um único
ser, branco e pleno, cabendo ao homem negro e aos “outros homens”, nesse conto
de fadas contemporâneo, serem vistos como os machistas por excelência,
degenerados crônicos e moralmente deficitários, ecos da estereotipia colonial
repaginada.
Com efeito, nossa constituição não desconsidera as
características ditadas pelos homens brancos. Assim, nossa afirmação de
masculinidade passa, em certo grau, por imagens brutalizadas do tipo: “Ser
negão de verdade”, “Ter pegada”, “Bem dotado”, “Força física descomunal”
(FAUSTINO, 2014)[2].
Aquele que não conseguir corresponder com tais
atributos corporais enfrentará sérios problemas em seu processo de socialização
e identidade. Para o professor de literatura Mark Sabine “… a psique do
homem negro colonizado só poderá recuperar-se do traumatismo quando esse homem
repudiar não apenas a máscara branca que julga ser o seu direito de nascença,
mas também a máscara negra que o colonizador lhe impõe” (SABINE, 2011,
p.199)[3].
Em outras palavras, não querer ser branco, nem o
negro que o branco inventou. Para tanto, o patrimônio cultural africano e
afro-brasileiro é peça-chave.
O Homem Negro Vida
Em primeiro lugar, homens negros não se resumem a
teses acadêmicas e experiências pontuais, somos o “negro-vida” [4],
dotados de uma energia ancestral incapturável, “A masculinidade é
agressiva, instável, combustível. É também a mais criativa força cultural da
história.” (PAGLIA, 1993, p.64)[5].
A aliança entre essa vivacidade criadora, com arquétipos de inspiração
afrodiaspórica pode fornecer subsídios na elaboração de masculinidades negras
que rompam com profundos mecanismos racistas e sexistas, que agem não só nas
estruturas objetivas como também nas cognitivas, transformando homens “cabisbaixos,
envergonhados, curvados ao peso da melanina” (LOPES, 2006, p.10)[6],
em homens que realmente sabem quem são, onde estão e para onde vão.
No texto Nós matámos o cão-tinhoso: A
emasculação de África e a crise do patriarca negro, Sabine relaciona o
conto do moçambicano Luís Bernardo Honwana, “Nós matamos o cão tinhoso”, com o
romance anti-segregacionista To kill a mockingbird da escritora
Harper Lee, fazendo uma leitura crítica dos valores da masculinidade portuguesa
devido aos seus aspectos fortemente ligados ao empreendimento colonial, que
exalta a violência, crueldade e covardia, reivindicando seu domínio através da
força. Longe disso, as masculinidades africanas tradicionais são valorizadas
pelos “… ideais de coragem, liderança, compaixão, e a entrega de força
física e perícia ao bem comum, ao invés da glória pessoal”.(SABINE, 2011,
p. 188).
Já no poético livro Homens da África (2012)[7],
o escritor Costa-Marfinense Ahmadou Kourouma apresenta quatro arquétipos de
homens negros africanos: o Griô, o Príncipe, o Caçador e o Ferreiro. O Griô
representa o homem conciliador, artesão da palavra e de grande poder inventivo.
Um homem que preza pela capacidade mental e não pela força bruta e truculência.
A antítese do estereótipo do homem negro violento e estúpido. O príncipe
simboliza o senso de responsabilidade para com o seu povo, educação e
liderança. Figura que se contrapõe ao negro irresponsável e imaturo. O caçador
é zeloso e protetor para a sua coletividade, provendo-a de alimentos até curas.
Esse arquétipo não admite o estigma do homem negro negligente. E por fim, o
ferreiro como um sábio, conhecedor dos mistérios do mundo. Hostil à noção de
incultos que carregamos.
Na diáspora afro-brasileira encontramos exemplos
masculinos poderosos no panteão religioso de matriz africana. Xangô encarna o
senso de justiça, autoridade e poder. Oxalá o pai da humanidade, representa
paz, serenidade e superação. Não podemos esquecer de Zumbi dos Palmares, um
personagem mítico-histórico, que representa a bravura e luta do
homem negro pela sua coletividade.
No campo dos símbolos, os adinkras (criados
originalmente pelo povo Akan de Gana) expressam aspectos calcados na agência
histórica dos povos africanos. O ideograma Sankofa significa voltar e apanhar
aquilo que ficou para trás, aprendendo com o passado, para construir o presente
e o futuro (NASCIMENTO, 2008)[8] aponta-se
desse modo, para uma concepção de respeito e afeto à nossa memória coletiva
ancestral, buscando preencher “o vazio de referências oficiais imposto
à maioria dos afrodescendentes brasileiros”(NASCIMENTO; SEMOG, 2006, p.
16).
Essas referências na maioria das vezes não se
encontram em um passado longínquo, na verdade habitam muitas das nossas
práticas cotidianas e jeitos de ser, é preciso notá-las para cultivá-las.
Dessa forma, sem pretensões puristas nem
maniqueísmos, por que nos pautaríamos por modelos de masculinidades
branco-ocidentais usados historicamente para nos subjugar, se possuímos os
nossos concebidos para nos fortalecer? A afirmação identitária refletida e
orgulhosa mostra-nos a beleza e a força da masculinidade negra, nossa “…
própria força vital, chamada axé entre os iorubanos, ngolo entre os congos,
tumi entre os acãs, baraka entre os africanos arabizados” (LOPES, 2006, p.
9).
E você tem orgulho de ser um homem negro? Por quê?
Henrique
Restier da Costa Souza é graduado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Relações Étnico-raciais pelo
Centro Federal Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) e Doutorando em
Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).
0 Comentários