Menos de 7%
das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas
Publicado em 29/05/2018 - 13:35
Por
Débora Brito – Repórter da Agência
Brasil Brasília
Menos de 7% das terras
reconhecidas como pertencentes a povos remanescentes de quilombos estão regularizadas
no Brasil. Nos últimos 15 anos, 206 áreas quilombolas com cerca de 13 mil
famílias foram tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), órgão que executa a titulação das terras já identificadas e
reconhecidas.
Desde 1988, o Estado já
reconheceu oficialmente cerca de 3,2 mil comunidades quilombolas. Quase 80%
delas foi identificada a partir de 2003, quando foi editado o Decreto 4887, que
traz os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por quilombolas.
Sem a certificação, os
territórios que remontam ao período colonial e que serviram de refúgio para
negros escravizados ficam inacessíveis para políticas públicas básicas e se
tornam alvos de conflitos.
Para lideranças
quilombolas, o decreto foi eficiente no reconhecimento das comunidades
existentes no país e na garantia de que as famílias tenham acesso a direitos.
Os ativistas lamentam, entretanto, que na etapa final de titulação os processos
não avancem.
“Conceitualmente, o
decreto proporcionou avanços. Na prática, o decreto é só um instrumento, ele
depende da operação da máquina estatal para que realmente se torne efetivo. E
aí a gente entende que o racismo institucional ainda impera”, avaliou Ronaldo
dos Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas
(Conaq).
Constitucional
Em fevereiro deste ano,
o Supremo Tribunal Federal confirmou a
constitucionalidade do Decreto 4887, que baseia todo o
processo de titulação dos territórios de comunidades quilombolas. A decisão do
Supremo garante ainda que não é necessário estabelecer o marco temporal de 1988
para a concessão dos títulos para os quilombolas, como pleiteavam algumas
entidades.
“Mesmo com essa vitória
no STF, a gente ainda enfrenta ameaças constantes por parte de fazendeiros que,
de certa forma, pelo fato de não terem ainda o repasse do valor [da
desapropriação], dizem que essas terras são deles. Por mais que a gente já
tenha em mãos a demarcação, ainda encontramos essa situação de várias
comunidades no Brasil com processo aberto e que acabam sofrendo ameaças”,
relata Valéria Porto, jovem quilombola da comunidade de Pau D’Arco – Parateca,
situada na cidade de Malhada, interior da Bahia.
No território onde está
o povo de Pau D’Arco-Parateca vivem cerca de 750 famílias distribuídas
em oito comunidades. Estudos apontam que o quilombo foi iniciado na área
ainda no século 17. A comunidade já foi reconhecida pela Fundação Palmares, mas
ainda aguarda a titulação. “A questão maior é garantir o título e junto com ele
acesso às políticas públicas que realmente garantem a sustentabilidade das
famílias que ali estão”, destacou Valéria.
“Não existe povo sem
território. Eu preciso do meu território, porque a certificação me dá
reconhecimento enquanto quilombola. Sem a certificação eu não posso construir
casas de quilombolas. Quando eu não tenho a propriedade desta terra, eu não
posso desenvolver a minha cultura, minha agricultura, minha pecuária, a minha
vocação econômica, porque pode chegar uma pessoa dizer que é o dono e eu perder
minha lavoura, minha casa, então fica difícil fazer investimentos”, explicou o
presidente da Fundação Cultural Palmares, Erivaldo Oliveira.
Dificuldades
Comunidades quilombolas que não têm
a posse legal da terra enfrentam dificuldades para ter acesso a serviços
básicos de saúde, educação e transporte - Marcello Casal jr/Arquivo
Agência Brasil
As comunidades que não
têm a posse legal da terra enfrentam ainda dificuldades para ter acesso a
serviços básicos de saúde, educação e transporte. Energia e água também são
escassas nas áreas remanescentes de quilombos e podem motivar conflitos entre
os povos tradicionais e proprietários de fazendas, madeireiras ou outros
empreendimentos que utilizam os mesmos recursos da área em disputa.
“Algumas políticas
chegam, outras não. Na questão educacional, ficamos um bom tempo apenas com o
ensino fundamental. Para o ensino médio era preciso sair da comunidade. E esse
ano inaugurou um colégio que estava há mais de seis anos em construção pelo
projeto Brasil Quilombola”, relata a quilombola Valéria.
Mesmo vivendo a poucos
quilômetros do Rio São Francisco, os quilombolas recebem água de carro-pipa,
porque empreendimentos da região canalizam a água do rio para irrigação ou
lavagem de minério.
A quilombola acrescenta
que uma das demandas mais urgentes da comunidade é a reforma da rodovia BA-160,
que liga o município de Bom Jesus da Lapa a Malhada. A estrada é a única
ligação da área com o centro urbano, onde estão os postos de saúde e outros
serviços essenciais.
Uma das demandas mais urgentes da
comunidade quilombola de Pau D´Arco é a reforma da rodovia BA-160, que liga o
município de Bom Jesus da Lapa a Malhada - Valéria Porto/Direitos Reservados
“Não é nem mais
estrada, porque ela tem muito buraco e pouco cascalho. Pessoas já morreram
nessa estrada porque não conseguiram chegar ao hospital. Mulheres grávidas já
tiveram que ter seus bebês ali na estrada porque não conseguiram chegar ao
hospital. No período chuvoso, a gente fica impedido de sair da comunidade”,
lamentou.
Em outras regiões, como
Cavalcante e Cidade Ocidental, no interior de Goiás, os povos Kalunga e
Mesquita estão lutando para não perder a área já reconhecida. Na última semana,
o território do quilombo de Mesquita, situado no entorno de Brasília, sofreu
uma redução de mais de 80%. “Quando os negros escravizados fugiam, eles iam pra
lugares bem distantes. As cidades é que foram crescendo para perto das áreas
quilombolas, que foram invadidas pela especulação imobiliária e hoje nós
estamos vendo até o absurdo de redução de terras quilombolas já tituladas”,
criticou Erivaldo, da Fundação Palmares.
Redução orçamento
As lideranças
quilombolas alertam para a redução do orçamento federal destinado ao processo
de regularização das terras de comunidades tradicionais. Segundo levantamento
da Organização Terra de Direitos, com base em informações do Incra, a
destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas
sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos.
O levantamento mostra
que em 2013 foram usados mais de R$ 42 milhões para a desapropriação das terras
onde estão os territórios quilombolas e este valor caiu para cerca de R$ 1
milhão, em 2018. “Esse valor não resolve o processo de uma comunidade”,
ressaltou Ronaldo dos Santos, da Conaq.
O coordenador geral de
regularização de territórios quilombolas do Incra, Antônio Oliveira Santos,
confirma o corte nos recursos, mas ressaltou que, apesar dos ajustes, a
política não vai parar. “De 2016 para 2017 houve uma redução drástica do nosso
orçamento. Para os relatórios de identificação, nós tivemos este ano R$ 1,8 milhão.
E para indenização de imóveis, no ano passado, nós tivemos algo em torno de R$
3,5 milhões. Este ano estamos com R$ 1,4 milhão”, detalhou Oliveira.
O coordenador reconhece
que o valor é insuficiente para finalizar todos os processos que estão em andamento
no órgão, por isso tem dado prioridade aos que se referem a áreas mais
conflituosas ou que têm mais famílias. “Em virtude dessa redução de orçamento,
não adianta abrir um processo que você não vai terminar. Então, aqueles que
estão em andamento nós começamos a acelerar, para ver se a gente chega no
final”, explicou.
Atualmente, o Incra tem
1.675 processos de regularização em andamento, mas tem trabalhado efetivamente
em cerca de 500.
Reforço
A Secretaria Nacional
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) transferiu ao Incra, na
última semana, o valor de R$ 1 milhão para reforçar o orçamento destinado à
elaboração dos relatórios antropológicos de comunidades de dez estados.
O secretário nacional
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Juvenal Araújo, disse à Agência
Brasil que o governo deve promulgar mais um decreto de interesse social para
fins de regularização de territórios quilombolas. Nas últimas semanas, foram
assinados decretos em favor das comunidades de Lagoa Santa, na Bahia, Vaca
Morta, na Paraíba, e Pirangi, em Sergipe.
Processo complexo
O processo de
reconhecimento e regularização de terras quilombolas tem muitas etapas.
A Fundação Cultural
Palmares é a responsável pelo processo de reconhecimento. Já o Incra inicia o
procedimento de certificação a pedido da comunidade, de outros órgãos ou por
meio de ofício.
Antes de ser titulada,
a terra é submetida a vários estudos para levantar informações históricas,
socioeconômicas, geográficas, antropológicas, fundiárias, ecológicas, entre
outras. A partir do resultado da avaliação, são emitidos relatórios técnicos de
identificação e delimitação, conhecidos como RTDI.
Com este documento, as
terras ficam aptas para seguir adiante na etapa de titulação, que só ocorre
depois da desocupação da área por pessoas não quilombolas. Dependendo do caso,
a finalização do processo pode levar anos. Segundo o Incra, alguns títulos
emitidos em 2000 ainda se encontram na fase de desocupação.
O título é concedido,
sem ônus financeiro, em nome das associações que legalmente representam as
comunidades quilombolas. O documento deve ser registrado com a condição de que
o território se mantenha inalienável, imprescritível e impenhorável.
Nos últimos 15 anos, o
Incra publicou 272 relatórios de identificação e publicou 149 portarias de
reconhecimento. Neste período, a Presidência da República publicou 84 decretos
de interesse social para fins de regularização de áreas quilombolas situadas em
terras públicas.
O Incra esclarece que a
regularização de territórios não é competência exclusiva da União. Alguns
estados, como Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Rio de Janeiro
e São Paulo já promoveram titulação de terras para grupos remanescentes de
quilombos.
Conflitos e mortes
De acordo com a Conaq,
no ano passado foi registrado um pico anormal no número de casos de
ameaças e mortes de lideranças quilombolas. Cerca de 20 líderes de comunidades
quilombolas foram assassinadas em 2017 em situações de conflito agrário, de
acordo com estimativas da Conaq e da Comissão Pastoral da Terra. O número é bem
maior do que a média de duas a três mortes anuais.
“Sem sombra de dúvida,
se o Estado deixa de atuar, principalmente na área agrária, a tendência é o
aumento de conflitos. Nós tivemos no ano passado vários assassinatos de
quilombolas no Brasil, principalmente no estado da Bahia”, disse o coordenador
do Incra.
Um dos casos recentes
que chamou a atenção do governo ocorreu em Acará, interior do Pará, onde o quilombola conhecido como Nazildo foi morto.
Ele era um dos líderes do Quilombo Turê 3. A Secretaria Nacional de Promoção de
Políticas de Igualdade Racial e a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos estão
monitorando o caso.
“Estive pessoalmente
com o secretário de segurança do estado do Pará, com o diretor da Polícia
Civil, o Ministério Público e a Polícia Federal que estão acompanhando o caso
desse assassinato. O nosso trabalho é de monitoramento de todas as políticas de
igualdade racial e estes conflitos agrários em comunidades quilombolas fazem
parte da atuação da Seppir”, disse Juvenal Araújo.
Conapir
A regularização das
terras quilombolas está entre os temas debatidos na 4ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade
Racial, realizada em Brasília. A Conapir reúne diferentes
entidades, pesquisadores e ativistas que trabalham com a questão racial para
discutir formas de enfrentamento ao racismo em diversas áreas. A programação da
conferência vai até amanhã (30), quando deve ser apresentado um documento com
propostas de políticas públicas para a população negra.
A Conapir é organizada
pelo Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, como o apoio do
Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
Saiba mais
Edição: Lílian Beraldo
0 Comentários