“Um
advogado pediu que seu cliente fosse julgado por um juiz branco e não por mim”
Date:
01/11/2016
Nossa, mas a senhora não tem cara de juíza” é uma
frase que a juíza Mylene Pereira Ramos está muito acostumada a ouvir. Para
muitos de seus interlocutores, Mylene não tem cara de juíza por uma razão
específica: ela é negra.
Por Kalleo Coura Do Jota
Formada em Direito pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mylene tem mestrados pela
Universidade de Stanford, na Califórnia, e pela Universidade de Columbia, em
Nova Iorque, onde se aprofundou em Direito Internacional do Trabalho.
Juíza do trabalho desde 1994, há alguns anos ela
teve de ler um recurso que a deixou ultrajada. O advogado de um skinhead que
requeria vínculo trabalhista com uma gravadora musical e teve o pedido negado
por ela, ajuizou um recurso em que pedia que seu cliente fosse julgado por um
juiz branco. “Foi muito aviltante ler aquilo. Nunca tinha visto uma coisa como
aquela”, afirma.
Atualmente, Mylene é diretora do Fórum Trabalhista
da Zona Sul e substitui um desembargador no Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região. A juíza recebeu a reportagem do JOTA em seu
gabinete e falou sobre preconceito, falta de diversidade nos tribunais e
reforma trabalhista.
Leia a entrevista:
Por que a senhora quis ser uma juíza do trabalho?
Quando eu tinha cinco, seis anos
de idade, meu pai trabalhava nas obras do metrô aqui de São Paulo. Ele ficava a
semana inteira no trabalho, não voltava para casa. Eu via minha mãe brava,
falando com ele. Ele não tinha problemas de saúde, mas tomava remédios – para
não dormir. Trabalhava dias seguidos sem dormir. Depois de quatro dias seguidos
sem dormir, trabalhando 24 horas, ele sofreu um derrame cerebral, aos 36 anos.
Nem uma máquina produz desta forma. Ele ficou dois meses entre a vida e a
morte, sobreviveu com sequelas e se aposentou por invalidez logo em seguida.
Minha mãe trabalhou a vida inteira como empregada doméstica e também se
aposentou por invalidez. Quando comecei a pensar em prestar concurso, pensei na
Justiça do Trabalho porque imaginei que com minha experiência de vida poderia contribuir
– não defendendo os trabalhadores, mas tendo o conhecimento de uma insider,
de quem já viu algumas situações por dentro. Quis ser juíza do trabalho porque
uma das experiências que mais me marcou na vida, foi ver o meu pai perdendo a
saúde dele em função do remédio que ele tomava para não dormir e trabalhar.
Sempre que ando de metrô lembro do momento em que um amigo dele chegou em casa
para nos dizer que ele estava no hospital entre a vida e a morte.
Há pouca diversidade nos tribunais em geral. Quantos
desembargadores são negros aqui no TRT-2?
Aqui no TRT-2 temos apenas uma
desembargadora negra, a doutora Rilma Hermetério [entre 93 desembargadores], e
no primeiro grau conheço apenas outro juiz de primeiro grau que se identifica
como negro [entre 415 juízes]. Eu falei sobre essa questão no TEDx São Paulo,
sobre a necessidade de haver mais diversidade racial na magistratura. Aqui não
tem diversidade racial. E falta diversidade de gênero, de transgêneros ou mesmo
em relação à questão de opção sexual nós não vemos juízes se posicionando. A
Justiça precisa de diversidade. Cada um de nós é diferente. Somos na essência
iguais, mas cada um tem uma experiência diferente de vida. A minha mãe ter sido
doméstica me moldou no que sou hoje. Eu não sou como alguém que nasceu nos
Jardins ou que o pai é fazendeiro. Eu sou eu, a Mylene, que teve esta
determinada experiência de vida. É isso que faz com que o juiz estabeleça
determinados critérios de avaliação na vida, crenças e valores. Quando você tem
juízes diversos, vai ter pessoas diversas avaliando os casos. Por exemplo, um
reclamante diz que era discriminado porque era chamado de “negão” ou que ouvia
dos colegas “samba aí”. Mas a testemunha diz: “era brincadeira, a gente pedia
para ele sambar porque achava bonito. Meu melhor amigo é preto, não era
preconceito”. Um determinado juiz pode se perguntar: “onde está o racismo? Não
tem problema nenhum”. Eu, por causa da minha história, vou analisar de outra
forma.
A senhora já sofreu preconceito como juíza?
Sim.
Sim.
De que forma?
Acho que um dos grandes
preconceitos é você não ser reconhecida pelo que você realmente é. Nesta
semana, uma advogada veio me entregar memoriais. Eu estava na sala junto com os
funcionários. Falei: “sim?”. Ela ficou meio assim e disse: “a senhora que é a
juíza? Nossa, a senhora é tão jovem, nem pensei que pudesse ser a juíza. Não
tem cara de juíza”. Não tem cara de juíza é uma frase que sempre ouço. Quando a
pessoa se assusta e não consegue reconhecer num negro a figura de um juiz, a
culpa não é dela; é da sociedade. Isto é um reflexo da falta de diversidade no
Judiciário. Minha mãe às vezes vinha ao fórum para me ver atuando. Isso
aconteceu pouquíssimas vezes. Mas, nessas pouquíssimas vezes, minha mãe ouviu
comentários, como por exemplo: “olha que absurdo: essa mulher é juíza. Há um
tempo atrás ela estaria na cozinha da minha casa lavando o chão”. Às vezes
acontecem casos muito extremos. Julguei improcedente uma reclamação trabalhista
de um skinhead que, de fato, não tinha cabimento algum. Depois de ter sido
preso em flagrante por ter agredido um homossexual negro na Avenida
Paulista, ele foi desligado do trabalho. O advogado entrou com um recurso
dizendo que queria que o processo de seu cliente fosse julgado por um juiz
branco, não por mim. Eu estou tendo preconceito porque sou negra? A pessoa de
fato escreveu isso, estamos numa sociedade doente.
A senhora tomou alguma medida contra este advogado?
Não. Eu faço parte da comissão de
igualdade racial da OAB e tenho um
ótimo relacionamento com a classe dos Advogados. Sempre opto pelo diálogo e
preferi não criar uma polêmica, até porque o questionamento sobre a minha
parcialidade em razão da cor da minha pele foi arguida em recurso ordinário,
sobre o qual o TRT-2 iria se manifestar. Mas foi muito aviltante ler aquilo.
Nunca tinha visto uma coisa como aquela.
E por parte de pares? A senhora também já sofreu
preconceito?
(silêncio por sete segundos)
Pares? Não posso dizer que sofri preconceito, algo que tenha sido na minha
frente. Tenho amizade com todos, procuro ser uma pessoa cordial. Estou na
Justiça, aqui em São Paulo, desde 1995. Sou juíza desde 1994. As pessoas sabem
que sou muito bem preparada, que criei uma teoria sobre assédio processual, que
foi reconhecida internacionalmente e também influenciou o Novo Código de
Processo Civil como ele é hoje. Então, fica mais difícil você chegar e
enfrentar. Mas nós sabemos que muitos critérios são subjetivos. Por exemplo, o
critério da meritocracia. A meritocracia dentro do Judiciário tem alguns
requisitos básicos – e ser negro não ajuda. Alguns critérios excluem. Se você
tem a oportunidade de promover um juiz branco ou um juiz negro, o branco, com
sobrenome, com histórico familiar, em geral é o escolhido. Isso vale para a
eleição do quinto constitucional também. Na última eleição tinha uma candidata
negra que era muito bem preparada – e não foi a primeira vez que ela não foi
eleita. Por ser subjetivo, este critério pode excluir os negros e outros integrantes
de grupos historicamente discriminados. Faço parte de um grupo de mulheres negras justamente para
discutir o empoderamento da mulher negra.
A senhora se considera uma ativista dessa causa?
Sim. Agora, a palavra ativismo é
meio perigosa. Não sou uma ativista judicial. Precisamos de mais juízes negros
não porque os magistrados negros defenderão as partes negras. Precisamos, sim,
para ter mais representatividade. Agora, como cidadã, mulher e negra eu sou uma
ativista para o empoderamento das mulheres negras e por mais diversidade em
geral. Aqui dentro sou uma juíza como qualquer outra. Não olho diferente para
ninguém seja de uma cor ou de outra. Sou ativista na minha vida como cidadã.
As cotas raciais funcionam bem na Justiça do
Trabalho?
Temos um problema estrutural. Por
toda uma herança da escravidão, os negros se encontram no patamar mais inferior
da pirâmide social. Essa questão toda faz com que a maior parte dos negros não
tenha acesso a uma educação de qualidade. O concurso para acesso ao cargo de
juiz é muito exigente – e tem que ser exigente mesmo. As cotas, neste caso, não
resolvem absolutamente nada porque não faltam e, sim, sobram vagas. Os negros,
entretanto, não passam porque não tiveram uma educação de qualidade como os
candidatos brancos tiveram. Enquanto as crianças negras e os adolescentes
negros não tiverem acesso a uma educação de qualidade, eles não terão condições
de passar no concurso da magistratura. E sem uma magistratura diversa na
primeira instância também não teremos uma magistratura diversa na segunda. Os
negros ficam represados do outro lado da cerca, que divide estes concursos.
No Itamaraty, foi montada uma comissão para avaliar
a autodeclaração dos candidatos que se disseram negros. Um critério mais
objetivo para as cotas, como o econômico, não seria mais adequado?
A cota social com base em
rendimentos não atinge o propósito racial. Se você é branco e pobre vai ter
mais condições de ascender socialmente e economicamente do que um negro pobre.
A cota racial é uma reparação em razão da escravidão. Mães escravas muitas
vezes pegavam suas crianças no colo e jogavam no tacho de óleo quente para que
seus filhos não passassem pelo que elas passavam nas senzalas. As famílias eram
separadas, as pessoas não tinham sequer noção do conceito de família. Temos
cicatrizes lá de traz que repercutem aqui hoje com relação à desestruturação
familiar. Tem que haver uma reparação. A cota social não resolve isso. Essas
comissões para coibirem fraudes são necessárias. Participei de uma sessão numa
dessas comissões na esfera municipal, em que candidatas iam com as mãos e
rostos maquiados para parecerem negros. Em contrapartida, há casos limiares em
que a pessoa não tem o fenótipo de negro, mas a família toda é negra. Não é um
caminho fácil. Está se procurando resolver. A lei tem que ser específica. O
critério precisa ser objetivo, assim como para obter cidadania estrangeira,
como, por exemplo, comprovas uma ascendência negra até segundo grau. As
comissões não são diabólicas. São um caminho para se descobrir como navegar
nesta política nova.
Os empregadores reclamam muito da Justiça do
Trabalho. Existe preconceito contra o empresário por parte dos magistrados?
É interessante essa questão. Uma
mentira repetida muitas vezes acaba se tornando uma verdade. Para dizer que a
Justiça do Trabalho tem preconceito contra a empresa precisaríamos ver as
estatísticas. Quantas causas são julgadas totalmente procedentes? Uma minoria.
O juiz do trabalho não criou a lei, foi o legislador. É ele quem pode mudar a
lei. Nós aplicamos a legislação como ela é. É certo que o empregado é parte
menos favorecida nesta relação, então é por isso que a lei destina a ele uma
proteção maior. Tem empresas que fecham deliberadamente as portas e não
entregam sequer as guias para que o trabalhador possa receber o
seguro-desemprego. Vemos isso diariamente. A Justiça do Trabalho aplica a lei
para que este país não se torne um grande navio negreiro como já foi.
A Justiça do Trabalho sofre preconceito por parte
dos outros operadores do Direito?
É muito comum ouvir que a Justiça
do Trabalho é uma “justicinha”. É um termo muito comum. A Justiça do Trabalho
sofre preconceito, sim, mas é um preconceito que está embutido na sociedade
brasileira. É um preconceito contra o negro, contra a mulher, o menos
favorecido, o mais pobre e também contra aquela justiça que recebe os
trabalhadores. O menos favorecido pode vir aqui, inclusive sem advogado. Daí
vem o preconceito.
Qual a sua visão sobre a reforma trabalhista?
O direito não é estático porque a
sociedade não é estática. O direito regula o que está dentro de uma sociedade
e, por isso, precisa caminhar. Agora, de que forma essa reforma vai ser feita?
Uma reforma baseada em ilações, de que os empregados não precisam mais de
nenhum tipo de proteção porque tem um sindicato forte, entre aspas nós sabemos,
num momento como este principalmente, me cheira mais a golpe. Primeiro precisa
ser estabelecida uma tranquilidade social para que se possa discutir. Vejo
vídeos na internet dizendo que a culpa dessa crise é da Justiça do Trabalho
porque julga sempre a favor do trabalhador, sendo que isso não é verdade. Ou
então, que os juízes do trabalho poderiam estar num tribunal soviético. Esse
tipo de campanha é extremamente perigosa. Uma reforma trabalhista proposta com
base em premissas falsas não está pronta para seguir adiante.
E quanto ao negociado acima do legislado?
Vai existir um momento em que o
negociado poderá prevalecer sobre o legislado. Mas não estamos na hora adequada
para isso, seja do ponto de vista político, jurídico ou econômico. Você tem
milhões de pessoas desempregadas. Há cidades do interior do estado de São Paulo,
em que 70% da população está desempregada, e se você for negociar que eles
trabalhem 24 horas por dia, eles vão aceitar. A negociação tem que ser justa.
As partes têm que estar em parâmetros iguais. O trabalhador não pode ter seus
direitos aviltados. Primeiro, precisamos pensar em como colocar as pessoas num
patamar igual para depois poder negociar. E essa terceirização desmedida é
liberar a precarização em todas as áreas.
A senhora, então, é contrária à terceirização?
A maioria dos acidentes de trabalho,
dos casos de discriminação, de precarização, todos estão ligados à
terceirização. O Estado mesmo contrata empresas que quebram pouco depois.
Já teve algum caso em que a União foi demandada por
trabalhadores de empresas terceirizadas pelo próprio TRT-2?
Não vou dizer que não existiu. Sim, existiram e
existem casos assim, mas o TRT-2 tem um olho muito mais clínico em cima dessas
terceirizações.
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