O capitalismo é capaz de reparar os danos causados aos negros?

No dia 26 de março de 2021, após lutas de décadas do movimento negro, o conselho da cidade de Evanston no estado de Illinois, nos EUA, autorizou liberação de um projeto que visa liberar indenizações aos negros e descendentes de negros residentes na cidade, devido aos efeitos persistentes da escravidão, da discriminação racial e do racismo sob a população negra. Mas essa medida seria mesmo uma saída para os problemas de conjunto dos negros nos EUA?

Agora essa discussão entra em cena com o governo de Joe Biden, que vem como uma "alternativa a esquerda” do governo Trump, liberando um projeto de lei que tramita há algum tempo e tem como objetivo conceder indenizações aos negros residentes e descendentes de negros que já residiram na cidade, por conta dos efeitos persistentes da escravidão, da discriminação racial e do racismo sob a população negra na cidade de Evanston. Mas estamos falando de Joe Biden, responsável pelo discurso de que para reduzir as mortes de negros pela polícia racista seria necessário que a polícia atirasse na perna dos negros e não mais na cabeça. Biden também é financiador do estado genocida de Israel, que nesse momento investe contra a Palestina causando centenas de morte de vidas inocentes. Dentro de tudo isso, não podemos esquecer de Kamala Harris, vice de Biden, mulher negra e policial que se colocou ao lado da polícia quando esta assassinou violentamente George Floyd.

A discussão sobre medidas de compensação do Estado ao povo preto, parte de um debate que coloca em questão o fato de que toda a economia capitalista tem suas bases erguidas em cima do sangue da população preta explorada com o escravismo, e que quando acontece a abolição— que vem da contradição entre a luta negra por liberdade e a insustentabilidade do regime escravista em conjunto com a necessidade de industrialização do capital— negros são relegados de participar dos mesmos espaços que os brancos proletarizados por conta de diversas restrições colocadas pela burguesia, pelos costumes e pelas leis da época, para que mesmo com o fim da escravidão se mantenha o racismo.

Para que as elites conseguisem apagar a força dos negros na construção da nova sociedade livre e de trabalho assalariado, foi necessário que todas as condições dignas de vida fossem negadas ao negro. Isso na prática se deu com a exclusão dos negros na construção dos novos centros urbanos que se desenvolviam, do qual nos foi relegado um papel marginal na própria estrutura urbana, com a exclusão do negro dos papéis centrais da classe trabalhadora em desenvolvimento, enquanto a burguesia os destinavam aos piores postos de trabalho, colocando trabalhadores brancos nos postos mais estratégicos, para evitar seguir uma economia mundializada baseada também em trabalho negro.

É visível que mesmo que essa estrutura não seja abertamente discurssada e formalizada pela constituição estatal hoje em dia, como no estado norte americano até os anos de 1983, — onde o movimento por direitos cívis negros obtem grande parte das suas demandas por conta da luta negra— o estado norte americano conseguiu cumprir o objetivo de manter negros exclusos de direitos na sociedade até hoje.

O que mais motiva o presidente Joe Biden, do Partido Democrata, a autorizar essa medida, — que no fundo é bastante superficial, e de nenhuma forma consegue resolver os problemas estruturais dos negros— é um tentativa de canalizar a insatisfação dos setores sociais oprimidos com medidas populistas. Após os protestos contra a violência policial que levaram ao assassinato de George Floyd, pelas mãos da polícia racista no governo Trump, e recentemente Daunte Wright durante o governo Biden, além da greve de mineradores e a tentativa de sindicalização da Amazon, Biden iniciou um plano para tentar amenizar as contradições da crise que são sentidas de todas as formas pela classe trabalhadora estadunidense.

O plano consiste em investimento em infraestrutura conhecido como plano de emprego estadunidense (The American Jobs Plan) que tem por objetivo injetar 2 trilhões dinheiro estatal durante 8 anos no financiamento de empresas privadas para iniciar um projeto de grandes obras públicas e de infraestrutura, para assim criar mais postos de trabalho e tentar dar uma resposta à questão do desemprego, gerado principalmente pela pandemia, e que afeta principalmente a população negra e imigrante no EUA. O importante de se entender aqui, é que isso se trata de um sinal para que o movimento negro se acalme e que de alguma forma seria possível com que o Estado, com suas ações judiciais ao longo do tempo, pudesse resolver os problemas dos negros, quando na verdade essa medida é dada em apenas uma cidade isolada e não responde de nenhuma forma os problemas que os negros enfrentam no país.

Mesmo que o país agora esteja sob administração de um governo que se propõe a ser progressista, que é o governo Biden, o país ainda é o detentor da maior população carcerária negra do mundo, tendo como negros a maioria da população morta por COVID-19, e que ao mesmo tempo lucra bilhões ao ano com a precarização do trabalho negro enquanto os extermina das formas mais desumanas pelas mãos da polícia. Seria realmente possível o capitalismo, com todas essas contradições, ser capaz de reparar todos os danos causados aos negros pelo racismo?

A medida foi aprovada com 8-1 votos pelo conselho da cidade do subúrbio de Chicago, e visa liberar um total 400 milhões de dólares para distribuir entre famílias consideradas elegíveis, da qual cada uma teria em média um total de 25 mil para reparos domésticos e adiantamento de propriedades e afins. A verba da qual será utilizada para as indenizações virá de doações e receitas de um imposto de 3% sobre venda de maconha para fins medicinais.

De fato, em alguma instância a medida serve à população negra que reside nesse local, e que tem sentido muito os efeitos da crise sanitária, além de que atende uma reivindicação de parte do movimento negro pelos danos causados à população negra proveniente que teve parentes que viveram na cidade entre 1919 e 1969. Mas, não podemos nos iludir com essa medida que abrange apenas um pequeno grupo da população preta enquanto a outra continua tendo a crise descarregada em suas costas.

A resposta dada nesse caso, não se trata de uma medida eficaz para combater a estrutura do racismo dentro do capitalismo, e sim uma medida da qual o próprio capitalismo, que se utiliza do racismo para se manter vivo, injeta dinheiro gerado pelos trabalhadores e apropriado pelos bancos e empresários, para tentar amenizar as consequências do racismo. Não são os banqueiros e os grandes empresários que irão ajudar a luta negra, e muito menos eles que irão acabar com o racismo.

Há uma diferença sobre o que é indenização histórica e reparação histórica. A indenização está interligada aos empresários e o estado capitalista ter lucrado quantidades exorbitantes de dinheiro em cima do sangue negro, e por pressão da luta, vem a ceder uma certa quantidade de dinheiro — que não chega nem perto do que negros geraram de lucros aos capitalistas com o decorrer da história durante a escravidão e no capitalismo hoje em dia — o que seria matematicamente benéfico aos capitalistas, uma vez que essa é a mesma lógica utilizada pelas empresas que lucram bilhões com a exploração dos trabalhadores, e quando algo acontece de errado liberam uma pequena (que para nós aparenta ser grande) quantidade de dinheiro, sem tocar na sua forma estrutural de funcionamento sabendo que essa quantidade de dinheiro será recuperada em alguns meses de exploração do trabalho. Para os capitalistas, isso tudo é um investimento que retorna em forma de apaziguamento da luta negra e de trabalhadores por um momento, e futuramente retorna em forma de capital.

 No caso da reparação histórica, o que se fala não é de uma reparação apenas monetária, e sim da necessidade de se acabar com o racismo nas instituições do estado, da necessidade de que negros parem de morrer pelas mãos da polícia racista, e da necessidade de negros terem postos de trabalho dignos, com direitos trabalhistas garantidos e com salários dignos. O que seria algo mínimo, e ao mesmo tempo impossível no estado capitalista, que em todas as suas crises descarrega o peso de suas dívidas em cima dos povos oprimidos, os fazendo pagar por uma crise da qual não geraram.

O exemplo do assassinato de George Floyd durante o governo Trump, assim com o exemplo do assassinato de Daunte Wright durante os primeiros meses do governo de Biden, nos mostra bastante sobre a incapacidade que o estado tem de dar saída aos problemas do racismo e da violência policial, e que ao mesmo tempo que libera indenização para uma pequena população de negros de uma cidade, é o mesmo que assassina negros todos os dias pelas mãos da polícia e que matou uma grande quantidade da população preta durante a pandemia devido a desigualdade salarial e as jornadas de trabalho precárias. Os EUA lucram internacionalmente com a precarização do trabalho preto em bilhões todos os anos. Não é a toa que grandes corporações norte americanas como a Microsoft, e diversas mineradoras, ainda estão em países devastados pela pobreza causada pelo próprio imperialismo na África, lucrando diariamente com o trabalho negro para extração de matéria prima.

Algo que vale ressaltar é que em nenhum governo na história, negros deixaram de ser extremamente explorados e mortos pelo capitalismo. Movimentos como o Black Lives Matter surgiram durante o governo de Obama, como uma resposta ao extermínio policial, que se deu também durante a sua presidência. Isso demonstra bastante o quanto a representatividade de pessoas pretas em posições de poder dentro do Estado e saídas institucionais não são suficientes para que negros sejam libertos das amarras do racismo.

É preciso que nós, enquanto negros, exijamos tudo do estado e tenhamos direito a tudo, e também entendermos que o estado capitalista é o principal obstáculo para que possamos obter nossas demandas. A única forma de conseguirmos nossa emancipação, é impor com a nossa luta as nossas demandas, para assim arrancar dos capitalistas aquilo que é nosso e, que pela necessidade e vontade de lucros, eles nos relegam. Para isso precisamos ter uma perspectiva de derrotar o estado em um enfrentamento contra o capitalismo, dentro da luta de classes.

A verdadeira reparação histórica só pode acontecer com o fim das desigualdades sociais e raciais, com o fim da precarização do trabalho e o fim da violência policial, portanto com o fim da polícia. Todas essas condições só se darão com o fim do sistema capitalista e da propriedade privada dos meios de produção, que só poderá vir como socialismo a partir da revolução, com o estado operário que rompa com o capitalismo. Um estado que seja a base da superação das desigualdades sociais, das classes sociais, das desigualdades e das divisões de gênero.

O racismo é uma ferramenta de dominação utilizada pelas classes dominantes desde o escravismo, que tem por utilidade fazer com que uma classe se beneficie e se ascenda economicamente em detrimento da ascensão social e econômica de outra, e essa classe que se beneficia é a dos capitalistas, e eles não irão abandonar essa ferramenta lucrativa de maneira alguma.

A discriminação, a xenofobia, o preconceito, o extermínio físico e a precarização do trabalho são formas que o estado arranja de fazer com que pessoas negras não se tornem sujeitos políticos de sua própria transformação, dividindo-os do restante dos trabalhadores e do restante da sociedade, que também é composta de trabalhadores oprimidos, mas que propagam, naturalizam e difundem o racismo que vem desde a educação nas escolas, das instituições do estado e da influência da mídia. Nesse sentido, a única forma de existir uma verdadeira reparação histórica que dê conta das demandas do povo preto e de todos os povos oprimidos, é com o fim do estado capitalista.

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