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texto e as fotos do Portal Geledés e sem autorização de ambos, autor e portal,
que espero obter agora, é por uma nobre causa.
As cotas para
negros: por que mudei de opinião por William Douglas, juiz federal (RJ)
Publicado há 3 anos - em 6 de
dezembro de 2011 » Atualizado às 12:58
Categoria » Cotas Raciais
Categoria » Cotas Raciais
por: William
Douglas
William
Douglas, juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF),
especialista
em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ),
professor e
escritor.
“Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um
dos autores do Código Penal de 1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson
Hungria, recomendava aos colegas de Ministério Público que “antes de se pedir a
prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia”. Gênio, visionário e à
frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender
bem uma situação.
Quem procurar meus artigos, verá que no
início era contra as cotas para negros, defendendo – com boas razões, eu creio
– que seria mais razoável e menos complicado reservá-las apenas para os
oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim.
As cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua
consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.
Embora juiz federal, não me valerei de
argumentos jurídicos. A Constituição da República é pródiga em planos de
igualdade, de correção de injustiças, de construção de uma sociedade mais
justa. Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A
Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que
a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais decente. Desde sempre
as leis reservaram privilégios para os abastados, não sendo de se exasperarem
as classes dominantes se, umas poucas vezes ao menos, sesmarias, capitanias
hereditárias, cartórios e financiamentos se dirigirem aos mais necessitados.
Não me valerei de argumentos técnicos
nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa monta, e o valor pessoal e
a competência dos contendores desse assunto comprovam que há gente de bem,
capaz, bem intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da
cerca: os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com bons
argumentos.
Por isso, em texto simples, quero
deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão, juiz, professor, “guru
dos concursos” e qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas para
negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o
aquele que me convenceu a trocar de lado: “passar um dia na cadeia”. Professor
de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre
como passar no vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e
carentes.
Mesmo sendo, por ideologia, contra um
pré-vestibular “para negros”, aceitei convite para aulas como voluntário
naquela ONG por entender que isso seria uma contribuição que poderia ajudar, ou
seja, aulas, doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e
dizer minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com
as aulas e livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um
problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.
Meu pai foi lavrador até seus 19 anos,
minha mãe operária de “chão de fábrica”, fui pobre quando menino, remediado
quando adolescente. Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000
livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho
curto, nem fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas
tive heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros
heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ,
Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do Supremo à
portaria de meu prédio.
Apenas não acho que temos que exigir
heroísmo de cada menino pobre e negro desse país. Minha filha, loura e de olhos
claros, estuda há três anos num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde
há brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar negra,
filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano,
escola sem professores, sem carteiras, com banheiro quebrado.
Minha filha tem psicóloga para ajudar a
lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra,
nada, tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada, que
ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio
quarto, coisa que lhe passou na cabeça quando viu o quarto de minha filha,
lindo, decorado, com armário inundado de roupas de princesa. Toda menina é uma
princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos compatíveis, e
armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso. A princesa negra disse para
sua mãe que iria orar para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me
incomodei por lembrar que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas
para fazer Sua Justiça. Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse
assunto. E se não cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser
divino nessa história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda
de todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à teorias e
comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e escolas boas
para as princesas negras, e também para os príncipes dessa cor de pele.
Não que tenha nada contra o bem estar
da minha menina: os avós e os pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter
isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de
desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha
que a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na
faculdade. Não seria igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao
completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e cruel maldade, para não
escolher palavras mais adequadas.
Não se diga que possamos deixar isso
para ser resolvido só no ensino fundamental e médio. É quase como não fazer
nada e dizer que tudo se resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos
anos de espera por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à
margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental,
médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e
assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Foi vendo meninos e meninas negros, e
negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma
esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não
foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários
“dias na cadeia”. Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais,
de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as
cotas fazem todo sentido.
Se alguém discorda das cotas, me
perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus temores.
Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo.
Temores apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo
um dia “na cadeia”. Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e
negros, onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos
que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num
cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo,
cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas
as matérias no ensino médio.
Se você é contra as cotas para negros,
eu o respeito. Aliás, também fui contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão
nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta,
repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale
porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos negros ao seu redor,
me perdoe, mas você precisa “passar um dia na cadeia” antes de firmar uma
posição coerente não com as teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade
desse país. Com nossa realidade urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a
realidade, senão os meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer
outra coisa, querendo vencer, querendo uma chance.
Ah, sim, “os negros vão atrapalhar a
universidade, baixar seu nível”, conheço esse argumento e ele sempre me
preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que sua média de notas é
maior, e menor a média de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas.
Curiosamente, negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros
pobres que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos
por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé e garra ao
pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a média de quem não teve
tanta dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e todos
frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.
Precisamos confirmar as cotas para
negros e para os oriundos da escola pública. Temos que podemos considerar não
apenas os deficientes físicos (o que todo mundo aceita), mas também os
econômicos, e dar a eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para
caminharem com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país
que se quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta
paciência para resolver a discriminação racial que existe na prática: vamos dar
saltos ao invés de rastejar em direção a políticas afirmativas de uma nova
realidade.
Se você não concorda, respeito, mas só
se você passar um dia conosco “na cadeia”. Vendo e sentindo o que você verá e
sentirá naquele meio, ou você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta
convicção contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao
menos uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser
heroínas e nós já conseguimos para elas uma estrada. Queremos um caminho para
passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a
alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E
queremos você conosco nessa história.
Não creio que esse mundo seja seguro
para minha filha, que tem tudo, se ele não for ao menos um pouco mais justo
para com os filhos dos outros, que talvez não tenham tido minha sorte. Talvez
seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem
alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão
morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano “na cadeia” com meninos
pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis
dizendo que precisamos das cotas, agora.
E, claro, financiar os meninos pobres,
negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e pelo conhecimento mudem
sua história, e a do nosso país comum pois, afinal de contas, moraremos todos
naquilo que estamos construindo.
Então, como diria Roberto Lyra, em uma
de suas falas, “O sol nascerá para todos. Todos dirão – nós – e não – eu. E
amarão ao próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei.
Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo
amor.”
Justiça expressa pelo amor e pela
experiência, não pelas teses. As cotas são justas, honestas, solidárias,
necessárias. E, mais que tudo, urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite
a cadeia.”
Fonte: Magazine Brasil
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