A cor
da água:
racismo
e oportunidade
para
negros nas piscinas
Publicado há 4 dias - em 18 de agosto de 2015 » Atualizado às 11:35
Categoria » Artigos e Reflexões- Portal Geledes.
Categoria » Artigos e Reflexões- Portal Geledes.
Li tudo de uma vez. Quase sem respirar. Que alento e maravilha. Quem escreve uma matéria assim semeia esperança e paz entre os povos. Lindo demais, leiam e espalhem.
Quando o cronômetro parou de rodar nas provas de
natação de 50 m costas e 100 m peito do Mundial dos Esportes Aquáticos,
encerrado no domingo (9), em Kazan, na Rússia, o mundo viu pela primeira vez
uma brasileira e uma jamaicana no pódio da principal competição de natação
depois da Olimpíada. Para além do novo espaço que abriram para o esporte
feminino em seus países, outro fato, pouco citado, as une: são negras. Atletas
raras em competições de alto nível da natação mundial. E por que isso seria
relevante?
Por Eliana Alves Santos Cruz Do Esporte Final
Uma rápida enquete com treinadores e atletas à
beira das magníficas piscinas construídas no meio do gramado do estádio de
futebol Kazan Rubin deu conta de que o tema é quente.
Matheus Santana, recordista mundial e campeão
olímpico júnior em 2014, disse: “Na água todo mundo é igual”. Matheus falava da
humanidade comum a todos, claro, mas a performance que faz um bater em primeiro
lugar, e outro nem passar para a fase semifinal está condicionada a fatores no
seco.
Dentro d’água tudo pode ser igual, mas fora
certamente não, pois a natação é um dos esportes em que a tecnologia é a nota
de corte. Ela dá o tom desde os trajes usados na hora da competição até a
análise do movimento no pós-prova, passando por todo o leque de apoio
multidisciplinar para que um atleta consiga colocar para fora todo o seu
potencial e figurar entre os melhores do mundo. Afinal, o meio aquático não é o
nosso habitat natural.
Não é preciso nenhuma pesquisa elaborada pra
comprovar o que os olhos facilmente atestam. São muito poucos os atletas negros
que se destacam na natação. Algumas teses falam que a estrutura óssea mais
pesada, a tendência a desenvolver mais músculos do que gordura, enfim, o
biótipo joga contra, ou melhor, afunda.
Muitos treinadores não têm uma opinião totalmente
formada devido à carência de pesquisas sobre o tema, mas entre os atletas
consultados a resposta é uma só: o problema é social e cultural.
Etiene Medeiros, 24 anos, a menina pernambucana que
roda os braços para trás na água e vai colecionando títulos pelo mundo tem o
pioneirismo no destino. Foi a primeira mulher brasileira medalhista nos
Mundiais júnior, em piscinas curta e longa. Primeira recordista mundial. Também
foi a primeira brasileira a ganhar o ouro da natação dos Jogos Pan-Americanos.
É mulher, é negra e nordestina.
“Já pensei muito sobre isso. É claro que está
relacionado com o acesso ao esporte muito mais do que qualquer outra coisa.
Muita gente diz que isso [racismo] não existe, mas é claro que pesa. Natação é
um esporte caro e para praticar é preciso ter acesso a lugares aos quais a
população negra tem dificuldade de chegar. Tem muita coisa aí nesta questão.
Minha mãe é negra e meu pai é branco, mas sempre fui muito conscientizada pela
minha família, que me apoia e me estimula em tudo a chegar o mais longe possível.
Para nós, essa base familiar é tudo”, falou Etiene, que tem tatuado no ombro
esquerdo a palavra “ohana”, que significa, entre outras coisas, família, em
havaiano.
“Brasil tem o racismo mais sem
vergonha de todos”
A jamaicana Alia Atkinsons está nas raias pelo
mundo há mais tempo do que Etiene. A atleta de 26 anos carregou a bandeira do
país nos Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007, onde superou o recorde jamaicano
dos 100 m borboleta.
Na Olimpíada de Pequim, em 2008, ficou na 25ª
posição, mas a partir dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, em 2011, ela
começou a subir ao pódio e, desde então, já tem na coleção uma medalha de ouro
e três de prata em Mundiais em piscina curta, duas medalhas de prata em Jogos
Pan-Americanos e agora, uma prata e um bronze no Mundial em piscina longa.
“Acho que é uma questão de popularização, de mídia.
Quanto mais popular o esporte for, mais gente vai praticar e aí surgirão os
talentos. Sei que existem teorias, mas particularmente não acredito em nenhuma
delas.”
Curiosamente, a Jamaica de Alia foi o destino de
Nicolas Oliveira logo após os Jogos Olímpicos de Londres, onde não passou das
eliminatórias dos 100 m livre. Disposto a relaxar e repensar a vida, o nadador
mineiro, que já esteve em cinco Mundiais e coleciona cinco medalhas de ouro e
uma de prata em provas de revezamento dos Jogos Pan-Americanos, arrumou as
mochilas e rumou para a terra de Bob Marley onde passou três, segundo ele,
inesquecíveis meses. Ficou tão fascinado que nas próximas férias disse que é
para lá que pretende seguir.
“Um lugar extraordinário. Brinquei com as crianças
no mar e fiquei impressionado com a facilidade com que aprendiam e com que
repetiam o que eu fazia. Oportunidade é tudo”, observou Nicolas.
Embora aparente sempre serenidade, Nicolas Nilo não
tem meias palavras para expressar suas opiniões.
“O Brasil tem o racismo mais safado, mais sem
vergonha de todos. É aquele escondidinho, disfarçado de outras coisas,
camuflado. Por isso muita gente jura que não existe. O esporte não está fora
disto. Ele sofre as mesmas coisas. Não é fácil chegar aos locais onde se
pratica a natação num nível mais profissional. Não foi tão simples para mim, um
cara da zona norte de Belo Horizonte, quando entrei no Minas Tênis, um clube da
zona sul e supertradicional. Nunca passei por nenhuma situação explícita, mas
acontecia lá o mesmo que acontece em toda a sociedade brasileira, ou seja, situações
veladas, por vezes sutis, mas que têm um nome só”, disse.
“Tem quem diga que não sou negro. Uma vez vi uma
entrevista do Mano Brown e me identifiquei porque ele falava da dificuldade que
enfrentam as pessoas ‘misturadas’, porque o racismo no Brasil se dá pela cor da
pele. Então a gente fica ali, no limbo”, brincou. “Mas somos negros e ponto final.
Vivi dez anos nos Estados Unidos [Arizona] e uma coisa eu admiro na cultura
deles é que as coisas são muito mais claras, e as pessoas se posicionam com
muito mais convicção. Isso nos faz falta. Acesso e oportunidade são a chave.”
Caminhando calmamente pelo deck da piscina do
Mundial de Kazan estava Anthony Nesty, o lendário nadador trinitino
naturalizado surinamês que foi o segundo atleta negro na história a ganhar uma
medalha olímpica na natação -antes dele, Enith Brighita, nascida em Curaçao e
nadando pela Holanda, ganhou duas de bronze nos Jogos de Montréal-1976.
Nos Jogos de Seul, em 1988, o americano Matt
Biondi, favoritíssimo ao ouro, nem acreditou quando olhou o placar e viu seu
nome em segundo. Nesty o derrotou por um centésimo nos 100 m borboleta. Em
Barcelona-1992, ele voltou para levar o bronze na mesma prova. Nesty hoje é
treinador e acredita numa combinação de fatores, mas nenhum ligado às características
físicas.
“Acredito que é uma junção de fatores sociais e
culturais. É um esporte muito caro comparando com outros como futebol, por
exemplo, e a população negra está nas camadas mais pobres. Existem outras
questões também como mídia. Por exemplo, se você pega uma menino de 11 anos no
Brasil, o que ele mais vê? Futebol! Nos Estados Unidos, o que temos? Beisebol,
basquete, golfe… A popularidade exerce um fascínio óbvio em todas as camadas da
sociedade. Biótipo? Não creio”, analisou.
Matheus Santana, campeão olímpico júnior e
recordista mundial da categoria começa agora a trilhar as competições absolutas
mais “pesadas”. Estreou nos Jogos Pan-Americanos de Toronto, onde levou o ouro
no time do revezamento 4×100 m livre. Seu técnico, Marcio Latuff, falou dos
cuidados que tem com ele.
“Falando do Matheus, a gente tem que ter um cuidado
muito grande, pois sabemos que os negros têm uma porção muscular maior do que a
de gordura e é importante o atleta ter um pouco de gordura para que ele possa
flutuar mais. No caso do Matheus, além disso, ele é portador de diabetes e a
medicação também propicia o desenvolvimento muscular. É preciso atenção pra
manter o equilíbrio, embora os velocistas sejam mais ‘secos’ que os nadadores
de fundo. Mas tem o outro lado também, pois os talentos precisam de
oportunidades para surgir, como foi o caso do Matheus, filho de funcionários
dos Correios, que apareceu numa competição da empresa. Ele nasceu com esse
talento, esse lado ‘peixe’. Se todo mundo tiver a chance, muitos podem chegar
onde ele está”, disse.
Matheus não crê que os músculos sejam obstáculo. “É
uma característica, mas não é uma coisa que impeça. Acho que é uma questão mais
social mesmo. Aqui em Kazan a gente viu o Metella [Mehdy Metella] que abriu com
um tempo excelente o revezamento francês que foi ouro, a jamaicana [Alia
Atkinson] do estilo peito… Com o tempo isso vem mudando. Acho que falta
incentivo em alguns países. Todo mundo tem que fazer a mesma força pra chegar
na frente. É nesse sentido que digo que dentro d’água todo mundo é igual”,
afirmou.
Natação
para todos
O relator especial da ONU para as formas contemporâneas
de racismo, Mutuma Ruteere, em novembro de 2014, conclamou todos os países
representados na Assembleia Geral a tomar as providências para explorar o potencial
dos esportes para deslegitimar discursos de superioridade racial e para
disseminar mensagens de igualdade e de não-discriminação.
As principais agendas da ONU para o esporte falam
de auxílio para a redução da pobreza, educação universal, igualdade de gêneros,
sustentabilidade ambiental, inclusão e promoção da paz.
A Federação Internacional de Natação (Fina)
mergulhou de cabeça na proposta, colocando provas mistas em todas as
disciplinas e criando um programa chamado “Swimming for all – Swimming for
life”, comandado pela entidade junto a pesos-pesados como o Escritório das
Nações Unidas para o Esporte para Desenvolvimento e Paz (UNOSDP), a Unesco, a
Organização Mundial de Saúde (OMS), o Unicef e o Comitê Olímpico Internacional
(COI).
O alemão Wilfried Lemke, conselheiro especial para
o desporto, o desenvolvimento e paz do secretário-geral da ONU, Ban ki-Moon,
foi à Convenção Mundial da Fina, em 2014. Todos estão atentos à necessidade de
fomentar a natação nas nações em desenvolvimento, pois, para além das questões
étnicas e competitivas, existe o fato inegável de que em um mundo em constantes
transformações climáticas é necessário saber nadar.
“De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o
afogamento é a terceira principal causa de morte e lesões não intencionais em
todo o mundo. O afogamento é responsável por um número estimado de 359 mil mortes
a cada ano”, disse.
No próximo grande evento televisionado, pense que
além dos minutos, segundos e centésimos, muita coisa corre na superfície da
água de cada competição de natação.
* Eliana Alves Santos Cruz é jornalista, assessora de esportes
aquáticos e vice-presidente do Comitê de Mídia da Fina. Curte demais esporte
olímpico.
0 Comentários