Artigo:
‘A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil’
Publicado há 21 horas - em 2 de novembro de 2015 » Atualizado às 12:13
Categoria » Em Pauta
Categoria » Em Pauta
portal geledes
Combater o trabalho escravo é criar um ambiente de
justiça social, onde todos tenham as mesmas oportunidades
Por WAGNER MOURA, do O Globo
Essa é a frase mais célebre do livro “Minha
formação”, do abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco. Esse livro foi escrito
no final do século XIX, portanto pouco mais de uma década depois de abolida a
escravidão no Brasil. Em 1888, o Brasil foi o último país ocidental a livrar-se
oficialmente do trabalho forçado. A escravidão tornou-se mesmo parte
fundamental da alma do nosso país. Creio que mesmo Nabuco, que se antecipou a
Gilberto Freire nas reflexões sobre a influência do trabalho escravo na cultura
brasileira, talvez não supusesse que no ano de 2015 suas palavras ainda fariam
tanto sentido.
A população negra brasileira ainda é a grande
maioria nos bolsões de pobreza e a sofrer violência policial. Recentemente, a
Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro resolveu impedir que ônibus
vindos das periferias da cidade chegassem às praias dos bairros nobres, sob
pretexto de evitar assaltos. Jovens negros eram, sem qualquer justificativa,
retirados dos ônibus. Ainda seguimos com plantas de apartamentos com “quartos
de empregada”, quartinhos escuros e sem janelas perto da cozinha. As empregadas
domésticas brasileiras, em sua grande maioria mulheres negras, somente há
alguns anos foram incorporadas ao mundo das leis trabalhistas. Muitas delas
ainda moram nas casas de seus patrões, trabalhando da hora que acordam até a
hora de dormir. A quantidade de pessoas negras nas universidades é consideravelmente
inferior à de brancos. Homens e mulheres negras ganham salários menores do que
os brancos. As políticas afirmativas enfrentam grande resistência no meio
político e entre a classe alta brasileira, também em sua grande maioria formados
por brancos. A maior parte dos pobres de nosso país tem a pele escura. Ou seja,
a escravidão dos séculos XVIII e XIX está evidentemente refletida na pobreza de
afro-descendentes no século XXI.
Mas essa é uma via de mão dupla, porque a pobreza é
hoje a maior responsável pela escravidão contemporânea. E, claro, a maioria dos
escravos contemporâneos no Brasil é formada por negros e mulatos. Embora o país
tenha avançado muito nos últimos anos no campo social, continuamos com altos
índices de pobreza e, especialmente, de desigualdade. Para mim, não faz nenhum
sentido ser a oitava economia do mundo e septuagésimo nono em Índice de
Desenvolvimento Humano. Pobreza, sem dúvida, leva as pessoas a uma situação de
vulnerabilidade em relação ao trabalho escravo contemporâneo. Ninguém se
submete a uma condição degradante de trabalho se tiver uma outra opção.
Combater o trabalho escravo é, então, combater a
pobreza e criar um ambiente de justiça social, onde todos tenham as mesmas
oportunidades e erros históricos possam ser corrigidos. Claro que combater a
pobreza no mundo é uma tarefa complexa, que envolve uma mudança gigante na
ordem mundial. Mas enquanto a vacina contra a pobreza e a desigualdade não fica
pronta, existem muitos remédios capazes de erradicar o trabalho escravo
contemporâneo, seu efeito colateral. São vários: fiscalização, responsabilidade
social por parte dos patrões, leis trabalhistas eficientes, punição exemplar
aos infratores, amparo às vítimas, entre outros. Na minha opinião, porém,
nenhum remédio é mais poderoso do que a informação. Porque é a informação que
vai fazer com que alguém deixe de achar normal haver pessoas trabalhando em
condições degradantes. Muitos trabalhadores sequer sabem que são vítimas dessa
prática. Muita gente de bem no mundo inteiro sequer acredita que a escravidão
ainda exista, pois associa-a, com alguma razão, aos navios negreiros de um
passado distante.
Quando eu disse, com pesar, que a escravidão faz
parte da cultura brasileira, também posso dizer, com orgulho, que o Brasil é um
dos países líderes no combate a essa prática nefasta. Uma das ferramentas mais
importantes na luta contra a escravidão é a divulgação de uma lista com os
nomes de pessoas físicas e jurídicas que foram apanhadas fazendo uso desse tipo
degradante de mão de obra, a “lista suja do trabalho escravo”, como é chamada.
No entanto, esse extraordinário instrumento, infelizmente, foi, há pouco tempo,
suspenso pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, que, por sua vez, respondeu
a pressões das forças interessadas na não divulgação da lista. Ninguém vai a
público dizer que é a favor do trabalho escravo, mas é impressionante o lobby
que existe a favor de sua manutenção. Vinte e um milhões de pessoas são vítimas
dessa prática no mundo, gerando uma receita ilegal de US$ 150 bilhões por ano.
A quem interessa a suspensão da lista suja? A quem tem medo de ver seu nome
publicado nela, claro.
A definição brasileira de trabalho escravo é a mais
avançada do mundo! Aqui, qualquer pessoa que trabalhe em condição degradante,
em jornada exaustiva ou que trabalhe por dívida é considerada vítima do
trabalho escravo. Já há uma pressão forte no Congresso (talvez o mais
reacionário e conservador da História deste país), por parte desses interesses
organizados, para que a definição brasileira seja mudada e para que seja
considerado escravo apenas o sujeito proibido, por força, de deixar seu local
de trabalho. Se, de fato, conseguirem mudá-la, estaremos dando mais um passo gigante
para trás, como fizemos com a aprovação do novo código florestal e com a
redução da maioridade penal. A quem interessa mudar a definição de trabalho
escravo brasileira que tanto gera elogios no mundo inteiro? Aos que submetem os
trabalhadores às condições compreendidas nela, isso também está claro.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) está
lançando uma campanha mundial chamada 50 for Freedom, que espera que, até 2018,
líderes de 50 países ratifiquem seu novo protocolo, muito específico na condenação
à prática do trabalho forçado. Parece fácil, mas não é. Até agora, só o Níger
assinou. Que exemplo bonito seria se o Brasil fosse o segundo país a fazê-lo!
Encontrei a presidente Dilma em Bogotá e obtive dela a garantia de que o
Executivo fará a proposta chegar ao Congresso o mais rápido possível e de que
ela vetará qualquer tentativa de mudança na definição brasileira de trabalho
análogo ao escravo. Serão ações como ratificar essa carta que farão o Brasil
seguir sua vocação progressista e se tornar exemplo no que se refere à igualdade
dos direitos civis, direitos humanos e sustentabilidade. Esse, no final das
contas, é o caminho que importa. E livremos os brasileiros das próximas
gerações da profecia de Joaquim Nabuco.
*Wagner
Moura é ator
Tags: Consciência Negra · em
pauta · Wagner Moura
Leia a matéria completa em: Artigo: ‘A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil’ - Geledés http://www.geledes.org.br/artigo-a-escravidao-permanecera-por-muito-tempo-como-a-caracteristica-nacional-do-brasil/#ixzz3qQS7ej3T
Follow us: @geledes on Twitter | geledes on Facebook
0 Comentários