O crime
perfeito III










Que legitimidade as pessoas que não pertencem a grupos que são discriminados têm ao falar contra ou a favor da diversidade? Por exemplo, um homem que critica o feminismo.
Falar contra não me surpreende, afinal nem todo mundo quer abrir mão dos seus privilégios ou quer ter consciência sobre eles. Mas, falar a favor, eu acho importante. Se você vê um homem falando sobre feminismo, muitas vezes ele é criticado, mas é importante que os homens toquem nessa questão, é importante descontruir a masculinidade hegemônica, o sistema. Quem pertence ao grupo privilegiado, tem de ter em mente que mulheres e mulheres negras são historicamente excluídas de posições de protagonismo e destaque. É importante que você abra espaço para esses grupos falarem, mas isso não quer dizer que você não tenha que falar e agir. Por exemplo, se você é professor e aborda esse tema numa sala de aula, ou entre amigos, pra explicar o que é machismo, assédio… Os homens também precisam se desconstruir, porque a masculinidade hegemônica está diretamente ligada à violência e à agressividade e nos diz respeito, porque nós [mulheres] é que estamos sendo agredidas.

Como foi a trajetória do racismo até ele ser entendido no Brasil como um crime?
A partir do momento em que se cria a Lei Afonso Arinos [nº 1.390, de 1951], que proíbe a discriminação racial, se reconhece que o país é racista. Isso é o mais importante.
Mas só a lei não resolve. Como fica a sua efetividade? Dificilmente se condena alguém por racismo, que é um crime inafiançável. Os casos são geralmente caracterizados como injúria racial. Se a lei fosse efetiva, a grande mídia e as empresas seriam processadas por racismo, pois a gente [negros] quase não se vê nos espaços, ou quando se vê é de uma forma estereotipada (conheça a diferença entre racismo e injúria racial). É importante trabalhar a questão da punição, mas mais importante ainda é frisar a importância da educação, da transformação de mentalidade. Então, a lei é um ganho, mas um ganho que tem limites.

A senhora acha que o problema da efetividade das leis que buscam combater o racismo – como a Lei Afonso Arinos ou a Lei de Educação Afro – ocorre por falta de vontade política?
Sim, falta vontade política, mas também acho que esses mecanismos são realmente limitantes. A justiça, da forma como é feita, tem limites claros e demarcados. Acaba sendo utilizada a favor de determinados grupos. Mas dentro dessa estrutura que já existe a gente tem de cobrar para ser menos desigual.

Se você analisar as faculdades de pedagogia, são poucas as que têm aulas de relações raciais e de gênero e, quando essas disciplinas estão presentes na grade curricular, são eletivas. Tem um conceito que as feministas negras usam que é o “epistemicídio” – o assassinato de epistemes [conjuntos discursivos] que não é a episteme hegemônica, que é imposta. Muitas vezes somos obrigadas a segui-la, porque não conseguimos espaço para estudar os temas que a gente acha importante, já que existe essa falsa visão de neutralidade da ciência, mas nada é neutro ou isento de ideologia. Então, quem quiser estudar esses temas é visto como militante ou ideológico, como se a academia também não seguisse uma ideologia, inclusive a de nos manter afastadas desses espaços.

A explicitação do racismo e do ódio pode resultar em algo positivo? Evidenciar que existe o racismo pode ser bom, pois enfrentar o que não se vê é mais difícil?
O primeiro passo é parar de negar a existência [do racismo], pois para mim, como negra, o racismo nunca foi camuflado. Para mim, sempre foi declarado, desde o momento em que eu entrei para a escola. Ou pela forma como as pessoas te olham quando você chega em um local… É importante quando quem não é o objeto daquilo começa a tomar consciência, porque ele também se vê como parte do problema. E, se você não faz nada para mudar, é porque concorda com esse tipo de coisa. Assumir responsabilidade pela mudança também é importante.

Nos Estados Unidos e na África do Sul, onde o racismo era institucionalizado, as lutas eram mais objetivas…
Não tinha o que negar. Estava muito claro e evidente e é por isso que aqui o racismo é o crime perfeito. Ele é evidente, promove desigualdade e as pessoas ainda estão negando. Mas é só ligar a tevê: os negros estão sempre em papéis estereotipados, bem específicos, nunca é uma pessoa comum. É a gostosa do samba, é a empregada, ou seja, ou é o lugar da subalternidade ou o lugar da exotização.

Na História do Brasil, a gente aprende que os negros eram escravos e pronto. Não contam que antes disso eles viviam na África, que existiam diversas etnias, não contam as várias revoltas que ocorreram durante a escravidão, que os negros que resistiram à escravidão, os vários quilombos, as grandes figuras, como André Rebouças, Machado de Assis, Dandara… O [filósofo alemão] Walter Benjamin diz que a História é contada pelo ponto de vista dos vencedores e, por isso, é importante que nós, que fomos vencidos, lutemos contra isso, se não eles continuam a vencer sempre. Então, quando me perguntam o que eu penso para o futuro, eu digo que antes de pensar o futuro eu acho que é importante recontar a História, porque é a partir dela que vamos olhar para o futuro de outra forma.

Djamila Ribeiro, 35 anos, nasceu em Santos, São Paulo. É mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ativista pelos direitos das mulheres e dos negros e colunista do site da revista Carta Capital