O crime

perfeito


Publicado em fevereiro de 2016 » CONTINUAÇÃO
Categoria »
Saúde












 
Como a senhora vê a questão da origem do preconceito? Principalmente nessas ações do cotidiano, de onde vem essa intolerância ao que é diferente? Pode-se dizer que é algo que nasce com a gente? Ou seria uma construção social?
É uma construção social. A gente já nasce numa sociedade que tem uma hierarquia de humanidade em que, se você é negro, vai ser tratado de um jeito, se é branco, vai ser tratado de outro. A sociedade já estabelece essas construções para nós e vamos assimilando isso, internalizando e aceitando como verdade. Ninguém nasce odiando ninguém, a gente aprende a odiar. A [filósofa americana] Judith Butler [uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo] fala que há vidas que foram construídas para não importar. A vida negra foi construída para não importar, tanto que o assassinato de cinco jovens negros no Rio de Janeiro com 111 tiros, o que é um absurdo, uma atitude terrorista, não causa tanta comoção quanto uma pessoa branca esfaqueada num bairro nobre, porque a vida negra não importa tanto quanto a branca.

Quais são os ganhos que uma sociedade mais diversa pode proporcionar para as empresas, para a política?
Eu vejo muitos ganhos. Primeiro, na questão do respeito. A gente se respeitaria muito mais, porque iria desnaturalizar coisas que aprendemos sobre o outro. Além disso, as opressões negam a possibilidade do surgimento de vários talentos. Imagina quantos talentos o machismo impediu de a gente ter no futebol, ou uma chefe de empresa, ou uma engenheira nuclear… Da mesma forma, o racismo. Por conta de um sistema de opressão, acaba-se negando oportunidades que poderiam contribuir de formas diversas e criativas para o progresso do País.

Ganharíamos também no combate à violência, porque, se a gente tivesse um país com oportunidades mais iguais, muitas pessoas não escolheriam certos caminhos. Muitas escolhem porque são excluídas e por falta de opção.

Como podemos combater a discriminação em suas várias esferas? Seja no sistema educacional, da escola à universidade, seja dentro das empresas, no momento da contratação e na escala de carreira, no cenário político e também nas ações do dia a dia?
Políticas públicas afirmativas são essenciais para diminuir essa desigualdade de forma emergencial. É para isso que servem – elas são temporárias e emergenciais para que não seja preciso esperar mais 100 anos para incluir determinados grupos. Um exemplo é a questão das cotas, que são importantes não apenas na educação, mas também no trabalho. Hoje, há apenas a Lei de Cotas no serviço público federal. Mas deveria ter também em outras instâncias, inclusive sobre as próprias empresas.

Nos Estados Unidos, onde as ações afirmativas vigoram há muitos anos, as empresas são obrigadas a contratar. Mas, se uma empresa americana abre uma filial no Brasil, ela não segue a lógica dos Estados Unidos. Então, se a gente não obrigar, infelizmente as pessoas não vão contratar apenas pela consciência. No entanto, ao mesmo tempo que tem de haver essas políticas públicas, precisamos lutar por algo mais a longo prazo, que é a educação. Isso vai levar mais tempo, é um trabalho de transformação, de mudança de mentalidade.

Quando críticos às cotas dizem que elas não funcionam, que tem de melhorar o ensino básico, é preciso lembrar que o movimento negro sempre reivindicou as cotas juntamente com a melhoria do ensino básico. As duas coisas têm de andar juntas.

De qualquer forma, eu acho que tem de haver também políticas públicas direcionadas [a grupos específicos]. Por exemplo, na questão da mulher, a última pesquisa de feminicídio mostra que aumentou em 54% o número de assassinatos de negras e diminuiu em 10% o de brancas (mais em quadro à pág. 47) . Isso mostra que as políticas públicas para mulheres não estão atingindo as negras. Políticas criadas de forma geral, se atingem apenas mulheres com um certo privilégio, outras acabam ficando de fora. É preciso pensar nesses grupos discriminados com base na realidade deles.

Uma das principais resistências das empresas em adotar ações afirmativas, como as cotas, é que esse modelo poderia entrar em conflito com um sistema de meritocracia. O que você acha desse conflito?
Eu não acredito na meritocracia. Que mérito tem uma pessoa que a vida inteira estudou numa escola particular, que come bem, tem lazer, faz curso de idioma, em passar na USP? Nenhum, ela teve oportunidade na vida! Eu acho que a questão é de oportunidades, não é de méritos. Como um menino que teve todas essas oportunidades na vida vai concorrer com um menino pobre, de periferia, que estudou numa escola pública, que não come bem? É desleal.

Eu sempre digo que as ações afirmativas não dizem respeito à capacidade, mas às oportunidades. São as oportunidades que não são as mesmas. E é justamente esse sistema desigual que cria a ilusão do mérito, de que alguém teve o mérito de estar lá, quando, na verdade, ela teve todas as condições necessárias para estar naquela posição. Claro que existem pessoas geniais, mas a maioria são pessoas que tiveram oportunidade.