O crime perfeito

Publicado há 1 dia - em 7 de fevereiro de 2016 » Atualizado às 11:20
Categoria » Saúde

 PARTE 1
Durante a reunião de pauta desta edição, alguém sugeriu convidar para a Entrevista “aquela colunista da CartaCapital”, cujo nome não lembrava. “Dá um Google e coloca: colunista, CartaCapital, filósofa.” Assim foi feito. Mas o Google em resposta logo perguntou: “Você quis dizer filósofo?” – substantivo masculino.
Não, Google. Trata-se de uma mulher, mestre em filosofia política, militante do movimento negro e colunista do site da CartaCapital – Djamila Ribeiro. Até mesmo uma simples busca na internet prova como é raro encontrar representantes de parcelas da população como negros e mulheres em posição de destaque na sociedade.

Por FERNANDA MACEDO E MAGALI CABRAL FOTO BRUNO BERNARDI do

Esse desequilíbrio tem suas raízes na diferença de oportunidades entre grupos privilegiados e aqueles que são historicamente marginalizados. “Eu não acredito na meritocracia”, afirma a filósofa ao ressaltar a importância de ações afirmativas como uma forma de compensação nesse sistema desigual, que cria a ilusão do mérito.

No Brasil, o preconceito e a discriminação são comportamentos quase nunca confessados. “Aqui, o racismo é o crime perfeito, ou seja, é evidente, promove desigualdade e as pessoas ainda estão negando que ele exista”, constata ela, nesta entrevista sobre como o Brasil lida com a sua diversidade.

Por que, até hoje, não conseguimos promover uma maior igualdade para parcelas da população, como negros e mulheres, que são tão representativos numericamente e, no entanto, têm uma baixa representatividade como formadores de opinião e tomadores de decisão?
Acho que tem a ver com a maneira como o Brasil foi formado. O mito da democracia racial escamoteou durante muito tempo o racismo no Brasil. As pessoas acreditavam que não havia racismo aqui. Até hoje, isso se reflete na falta de maturidade ao debater esse assunto. As pessoas ainda não entenderam que o racismo é um sistema de opressão. Além de mais de 300 anos de escravidão, o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravatura. No período de pós-abolição não foram criados mecanismos de inclusão. No processo de industrialização, incentivou-se a vinda de imigrantes europeus para cá. Foi essa trajetória que levou a população negra a uma situação muito grande de pobreza e vulnerabilidade social.

Ao mesmo tempo, desenvolveram-se mitos como o de que não existe racismo no Brasil, que isso só acontece na África do Sul ou nos Estados Unidos. Na verdade, o racismo é um elemento estruturante, ou seja, ele estrutura todas as relações sociais no Brasil. Mas a gente não encara esse assunto da maneira como deveria. Até hoje, se vemos algum caso de racismo, por exemplo, com um artista, as pessoas acham que é um caso isolado, acham que o racismo se resume somente às ofensas e não percebem que o racismo é um sistema opressor que nega direitos a um determinado grupo conferindo privilégios a outro.

O que falta para haver esse diálogo mais maduro?
Falta ouvir mais os movimentos sociais, pois a gente [os militantes] tem pautado isso [o racismo como elemento estruturante do país] há muito tempo. Isso vale até mesmo para a esquerda. Eu sou de esquerda, mas sou muito crítica ao debater a questão racial e de gênero nesse âmbito. Durante muito tempo, a esquerda dizia que tudo era uma questão de classe e só se guiava por isso. Só depois de resolver a questão de classe é que seriam sanadas outras questões. Dizia-se ao movimento feminista e de raça que eles dividiam a luta. Só que, no Brasil, não tem como falar de classe sem falar de raça e de gênero, porque raça indica classe, e o racismo impede a mobilidade social da população negra, criando uma grande massa de negros pobres. O racismo também cria uma hierarquia de gêneros, colocando a mulher negra em uma situação muito maior de vulnerabilidade social.

Se a gente parar para pensar nos grandes partidos, inclusive os de esquerda, quem são os seus dirigentes? Homens, brancos, de classe média. Onde estão as mulheres? Ou os homens negros e as mulheres negras? A gente não tem um protagonismo para pautar nossas questões, ficamos sempre com o intermediário do homem branco de posses.

Como a senhora vê a situação do Brasil daqui para a frente? Acredita que vamos melhorar, teremos uma sociedade mais equilibrada em termos de diversidade?
Tivemos alguns avanços importantes nos últimos governos. Acataram uma reivindicação histórica do Movimento Negro, as cotas nas universidades. A lei de 2012 [Lei nº 12.711/12] para todas as universidades federais foi uma vitória. Mas algumas, como a UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], já haviam adotado as cotas desde 2001 e a UnB [Universidade de Brasília] desde 2004. Isso aumentou significativamente o número da população negra dentro dos espaços acadêmicos. Teve também o sistema de cotas para os serviços públicos federais, o Estatuto da Igualdade Racial… Mas, ao mesmo tempo que esses avanços acontecem, a juventude negra ainda é massacrada, e a mulher negra é a que mais morre… Não conseguimos resolver ou diminuir essa violência em outros lados.

Sou confiante de que não temos mais como retroceder, mas ainda há muito caminho pela frente. Os avanços ainda contam muito pouco perto de tudo aquilo que o país deve à população negra. As pessoas não veem isso como uma dívida, não percebem, por exemplo, que as ações afirmativas não são um benefício para a população negra; na verdade, é uma reparação a todos esses anos de desigualdade.

Até nas escolas há uma grande dificuldade de debater o tema… Tem uma lei [Lei nº 10.639/2003] que determina o ensino de África e da história afro-brasileira nas escolas. A efetividade dessa lei é um problema, porque não há professores preparados. As prefeituras e os estados não dão cursos para esses professores, não há uma cobrança se o tema está sendo ensinado ou não. A educação é um excelente modo de a gente mudar a mentalidade e a escola deveria ser um espaço importante de mudança, mas acaba sendo um espaço de reprodução de violência.

Em São Paulo, a Secretaria [Municipal de Promoção] da Igualdade Racial está fazendo curso para os professores em relação a essa lei. Se a gente discutir racismo e sexismo dentro da sala de aula de maneira efetiva, vai produzir pessoas com outro tipo de pensamento.

Em relação a outros países que também possuem uma sociedade diversa, como a senhora vê a posição do Brasil? Como nos situa nesse cenário mais internacional?
O racismo é sempre ruim. Os próprios habitantes de um determinado lugar podem dizer, mas acho que, no Brasil, como diz Kabengele Munanga [antropólogo e professor congolês naturalizado brasileiro], o racismo é um “crime perfeito”, porque, ao mesmo tempo que temos uma sociedade extremamente racista, as pessoas dizem que não são racistas, ou seja, é uma sociedade de racistas sem racistas. As pessoas não falam sobre isso e, se você diz que alguém teve uma atitude racista, há respostas como “imagina, eu tenho um tataravô que era negro” e [o agressor] fica ofendido e não percebe que todos foram criados para serem racistas, da mesma forma que todo mundo foi criado para ser machista.

Isso mostra que a gente ainda tem uma imaturidade muito grande para debater o tema e saber a diferença, por exemplo, entre racismo e preconceito. Você não pode dizer que alguém sofreu preconceito ou racismo porque a sociedade é racista. Quando a sociedade é racista, os espaços não estão isentos.

Você acha que essa falta de entendimento sobre o que é racismo tem a ver com a forma pela qual algumas culturas interpretam a questão da liberdade?
Tem tudo a ver. Nos Estados Unidos e na África do Sul com o apartheid, que era lei – o racismo era constitucional, as pessoas sabiam que existia. Tinha escola para negro, escola para branco, e o negro sabia que não podia ir a determinados espaços. No Brasil, não houve uma lei, mas o racismo é institucional. Até mesmo uma parte da população negra brasileira acreditou que não havia racismo. Mas o apartheid existe aqui, basta ir ao Morumbi e ao Capão Redondo. Basta ir às escolas públicas e ao Colégio Objetivo. Por não estar previsto na Constituição, durante muito tempo as pessoas acreditaram que não existia racismo no Brasil. Outro elemento que contribui para essa falta de entendimento é a miscigenação. Mas as pessoas esquecem que houve uma política oficial de branqueamento da população do Brasil, trazendo imigrantes europeus para cá para miscigenar e acabar com a população negra, porque se acreditava que ela representava o atraso.

CONTINUA