Racismo:
uma herança que violenta o Brasil
Publicado
há 6 meses - em 28 de agosto de 2015 » Atualizado às 14:55
Categoria » Artigos e Reflexões
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Aprovado no último dia 15 de julho, o relatório da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que apurou violência contra jovens
negros e pobres no Brasil, nos apresenta uma realidade brutal da violência no
país, que nos desafia a elaborar ações urgentes para a superação dessa
realidade.
Por
Orlando Silva, do Vermelho.org
A vergonhosa quantidade de mortes
de jovens pelo país é o sintoma mais agudo de uma patologia social que sangra a
dignidade brasileira, o racismo. Essa realidade suplanta o mito da cordialidade,
a ideia de que a formação social e cultural no Brasil se deu a partir de
democracia racial, para citar Gilberto Freyre.
Darcy Ribeiro, um dos nossos maiores antropólogos brasileiros, ao refletir sobre a formação do povo brasileiro, deixa claro que o conflito inflado por um pensamento dominante, vindo de uma elite branca e europeia, foi a tônica de nossa formação. Ao longo desses 515 anos e diante de gargalos sociais complexos, podemos dizer que vivemos em estado de guerra latente. Uma conjuntura que convoca tanto Estado como sociedade a refletir sobre os caminhos e escolhas feitas até aqui.
A história mostra que, ao longo
de nossa formação, nosso sistema social construiu um racismo dos mais
perversos, que supera a constatação da diferença, pois encontra mais força na
desqualificação do outro. Um racismo silencioso.
Ao longo do século XX, período
de importantes transformações sociais – com a modernização industrial,
urbanização e ampliação das oportunidades educacionais e culturais -, não
se observou nesse mesmo sentido uma trajetória de redução das desigualdades,
sobretudo, das desigualdades raciais. Desse modo, para entender a gênese do
racismo, que impregna nossa sociedade como um todo, capilarizando-se pelas
artérias das instituições, é preciso recuperar a maneira pela qual nosso povo
se formou, entendendo a naturalização dos preconceitos, apontando o
posicionamento do Estado e traçando as saídas necessárias para a construção de
um caminho outro.
Nesse sentido, ao ser
implementada, a CPI do Jovem Negro e Pobre cumpre um papel institucional e de
reconhecimento central para superar tal realidade. Ao mesmo tempo em que
possibilita amplificação das vozes, historicamente, silenciadas, ela reconhece
que existe, sim, um “genocídio simbólico” em nossa sociedade, herdeiro de nossa
formação sociocultural e freio do nosso desenvolvimento. Uma realidade que, ao
longo não de alguns meses ou anos, mas de séculos, vem negando a esses
brasileiros os mais básicos serviços públicos.
Dados da violência contra a juventude
Nossa reflexão parte de dados
concretos que assombram os diferentes setores sociais. O fenômeno de homicídios
que vitimiza a juventude no Brasil, sobretudo, os jovens negros, se coloca como
um dos problemas centrais para o avanço de nossa sociedade. Combater a
violência, nesse momento, significa ir além das políticas de segurança, pois
falamos aqui de toda uma geração que é privada de seu futuro.
Os dados da violência contra a
juventude no Brasil são escandalosos e pioram quando a estatística analisa as
mortes de jovens negros e pobres pelo país. Considerando os dados de 2004 a
2007, percebe-se que o número de mortes da juventude negra supera o de mortos
na guerra do Afeganistão. Sendo que, de acordo com as estatísticas, os jovens
negros morrem 3,7 vezes mais que os jovens brancos.
E os dados revelam mais. Para ter
uma ideia, no Brasil, mais de um milhão de jovens foram vítimas de assassinato
entre 1980 e 2010. Indo além, os homicídios são a principal causa de morte de
jovens de 15 a 29 anos, atingindo, majoritariamente, o segmento de jovens
negros e pobres.
Essa situação piora ainda mais
quando verificamos os dados, publicados em 2014, pelo Departamento
Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Das 537.790 pessoas
que estão no sistema penitenciário, 93,92% são homens, 60% são negros, 66% são
pobres, 51% não tiveram acesso à escola. Esse é o número da vergonha, da
exclusão e revela o caminho que esses, outrora jovens, foram compelidos a
seguir.
Outro fator chocante nessa
realidade é a elevação, significativa, das taxas de suicídios a partir dos 17
ou 18 anos de idade, com taxas bem acima da média nacional, em torno de 5
suicídios a cada 100 mil habitantes.
Além disso, o relatório da CPI do
Jovem Negro e Pobre revelou que mais da metade (53,3%) dos 52.198 mortos por
homicídios em 2011 no Brasil eram jovens, dos quais 71,44% eram negros (pretos
e pardos) e 93,03% do sexo masculino. O Balanço de Gestão da Secretaria
Nacional de Justiça cita dados de 2012, assim, em 2012, morreram 56.337 pessoas
vítimas de homicídio, sendo 30.072 jovens – 53,4% do total. Destes jovens,
71,5% eram negros e 93,4% eram do sexo masculino.
Diante desse cenário brutal, na
atual quadra, nossa luta por avanços passa, sobretudo, pela superação dos
pilares que condicionaram a sociedade a uma situação de quarentena. E mais,
estamos diante de uma chaga histórica que coloca em xeque a nossa condição
civilizatória.
No que se refere ao racismo
institucional, o relatório nos dá uma importante contribuição, pois mapeia, a
partir de medidas de criminalização da juventude negra, os níveis de exclusão e
assédio que sofrem esses jovens. Por essa lógica, ao racismo material somamos o
racismo simbólico, pelo qual o povo negro se torna invisível. Apesar de
representar parte significativa da população e do mercado de trabalho e
consumidor.
E mais, o reconhecimento de que
os órgãos públicos têm um papel importante na perpetuação das desigualdades
permite compreender a importância do combate ao racismo institucional. Nesse
sentido, identificar nas ações cotidianas dos órgãos públicos, as situações nas
quais se manifestam os preconceitos e a discriminação racial direta e indireta
se converte em um passo central para avançarmos nessa agenda.
Vencendo uma herança voluntarista
O combate ao racismo no Brasil é
tão antigo quanto sua história. A Constituição Federal de 1988 reconheceu a
criminalização do racismo – que posteriormente definiu os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor com a Lei no 7.716/1989. Além disso, o
reconhecimento ao direito de posse da terra às comunidades quilombolas e a
criação de instituições como a Fundação Cultural Palmares, foram passos
importantes na luta de combate ao racismo. Tais ações são fruto da luta
incansável da sociedade civil organizada e se caracteriza como o início de um
processo de reconhecimento e de reparações, em sua maioria, ainda pendentes de
serem realizadas.
Outro sopro nas velas dessa luta
foi a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial da Presidência da República (Seppir)[1]. Estabelecida pela Medida
Provisória n° 111, de 21 de março de 2003, convertida na Lei no 10.678, a
Seppir nasce do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro
brasileiro. É importante lembrar que a data de criação da Seppir é emblemática,
pois em todo o mundo celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da
Discriminação Racial, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU).
O relatório ainda aponta, como
ação importante no combate à violência, o fortalecimento do Plano Nacional de
Juventude, proposto pelo governo federal. Para nós um instrumento importante
para o enfrentamento ao problema da violência contra os jovens negros no país.
Na mesma linha, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR),
instituído pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288/2010), representa
uma forma de organização e articulação estratégica, que pavimenta a
implementação de um conjunto de políticas e serviços para superar as
desigualdades raciais no Brasil, e, consequentemente, a violência brutal em
nossos estados.
Além disso, com o objetivo de
apresentar medidas concretas de enfrentamento aos homicídios de jovens negros e
pobres no Brasil, a CPI elaborou a proposta de Projeto de Lei (PL) que tem por
finalidade estabelecer o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de
Jovens. Uma das principais sugestões que trazemos é a realização de um recorte
racial para que as ações do plano priorizem a população negra.
Associado a essa proposta, a
Comissão também indicou, ao Poder Executivo, metas globais e setoriais, como
elementos fundamentais para mensurar a realidade daqui para frente. Partimos,
portanto, do pressuposto que o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de
Jovens terá como horizonte elaborar, em conjunto com os setores mais amplos da
sociedade e o Estado, ações que possam dar conta dos desafios encontrados.
É importante acentuar que estados
e municípios também deverão elaborar seu respectivo plano de forma articulada
entre si. Com essa medida, esperamos uma ação integrada e convergente em prol
da diminuição dos homicídios de forma efetiva, eficaz e eficiente.
No nosso entendimento, a
principal contribuição da Comissão residiu em apresentar um documento de
diretrizes, que partiu da realidade de jovens, pais e mães, que sofrem,
diariamente, com a violência. Nosso esforço está em propor um ação que se
constitua em avanço no combate à desigualdade, raiz histórica da violência.
Uma luta em curso
Decorridos mais de dez anos da
criação da Seppir, é possível notar a existência de avanços significativos, mas
ainda há um longo caminho pela frente. Os dados da violência comprovam isso. É
necessário, portanto, pensarmos em dar a escala que essas medidas realmente
precisam.
O cenário narrado revela o
desafio de se superar políticas voluntaristas e fortalecer as políticas
públicas de promoção da igualdade no Brasil. Dentre os caminhos apontados pelo
relatório da CPI do Jovem Negro e Pobre, está a criação um Fundo Nacional de
Promoção da Igualdade Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos.
O Fundo proposto pela CPI tem
como objetivo primordial financiar a Política de Igualdade Racial,
proporcionando as condições necessárias para que a Seppir e a Fundação Cultural
Palmares, bem como os demais órgãos, possam vir a exercer suas atribuições de
forma plena, eficaz e continuada. Já que a promoção e o fortalecimento das
políticas de combate ao racismo e ao preconceito se apresentam como elementos
estratégicos na constituição de um projeto nacional de desenvolvimento, que abarque
em seu interior todas as formas de interação da sociedade brasileira com suas
forças produtivas.
As mulheres negras, por exemplo,
são a maioria entre as mulheres pobres e exploradas da sociedade brasileira e
com isso se tornam também as principais demandantes de reformas estruturais que
democratizem e promovam as condições dignas para viver em nossa sociedade.
Após esse período de conquistas
(2003-2015), está na hora de avançar. A sociedade brasileira, o poder público e
as organizações sociais precisam se unir para repensar o modelo de
desenvolvimento em curso, o qual deverá dar conta do amadurecimento da
democracia. É preciso ampliar e fortalecer as políticas públicas de combate ao
racismo e ao preconceito, é preciso derrubar o véu que esconde essa chaga
social, só assim avançaremos.
E mais, não poderemos falar em
democracia forte, projeto nacional de desenvolvimento e avanço social sem
superar a herança brutal que a desigualdade impôs ao nosso país nestes 515
anos, que se revela na motivação racista que existe no extermínio da juventude
negra nas periferias das grandes cidades.
[1] Dentre os avanços alcançados pelo Seppir
destacam-se a realização de conferências nacionais de promoção de igualdade
racial em 2005, 2009 e 2013, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em
2010 e a articulação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que
levou às cotas em concursos e universidades públicas. Sem contar a criação de
programas de vital importância como o “Saúde da População Negra”, o “Brasil
Quilombola” e o Programa Cultura Afro-Brasileira.
*Orlando Silva (PCdoB) foi
ministro do Esporte nos governos Lula e Dilma, vereador na cidade de São Paulo
em 2013-2014 e é deputado federal pelo estado de São Paulo.
**Artigo publicado,
originalmente, na Revista Princípios.
Tags: Orlando
Silva · Questão Racial
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