Como evitar
fraudes nas cotas raciais?
Date: 17/08/2016
Representantes do movimento negro debatem resolução do Ministério do
Planejamento sobre a aferição da autodeclaração nas cotas raciais em concursos
por Tory Oliveira, da Carta Capital
Publicada em 2 de agosto no Diário
Oficial, uma instrução normativa do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento
e Gestão definiu novas regras para analisar a veracidade da
autodeclaração racial prestada por candidatos às vagas reservadas para cotistas
em concursos públicos.
A partir de agora, aqueles que optarem
por concorrer pelo sistema de cotas raciais serão analisados por uma comissão
responsável por avaliar presencialmente os “aspectos fenotípicos do candidato”,
ou seja, características aparentes como cor de pele e de cabelo.
Até então, bastava a autoidentificação
do candidato. O objetivo dessa segunda checagem seria evitar fraudes, isto é,
impedir que pessoas que não são negras se apropriem dessas vagas. Em dezembro
de 2015, o Ministério Público Federal apresentou uma ação civil pública contra
cinco candidatos suspeitos de fraude na autodeclaração racial em um concurso
para o Instituto Rio Branco, ligado ao Ministério das Relações Exteriores.
Criada em 2014, a lei 12.990 reserva
20% das vagas oferecidas em concurso públicos federais para pretos e pardos. A
legislação tem validade de 10 anos e busca reduzir a desigualdade racial nas
seleções para a administração pública.
A criação de comissões responsáveis por
avaliar a veracidade da autodeclaração no sistema de cotas, porém, não é
inédita. Há procedimentos semelhantes de checagem em universidades e também na
administração pública. Na prefeitura de São Paulo, desde abril há uma comissão
de análise, formada por membros da secretarias municipais de Promoção da Igualdade
Racial, dos Negócios Jurídicos e de Gestão. Na capital paulista, há cotas
raciais para concursos municipais desde 2014.
A mudança em âmbito federal, negociada
por setores do movimento negro organizado ainda durante o governo de Dilma
Rousseff, acabou publicada na gestão do interino Michel Temer, inflamando ainda
mais o debate nas redes sociais. Por um lado, critica-se a necessidade da
verificação fenotípica, isto é, das características aparentes do indivíduo. De
outro, ressalta-se a necessidade de coibir as fraudes e de garantir que negros
ocupem, de fato, as vagas reservadas pela ação afirmativa.
Para contemplar as diferentes opiniões
acerca do tema, ouvimos representantes do movimento negro organizado,
militantes e estudiosos das ações afirmativas sobre a aferição da
autodeclaração:
“Entendemos que é dever do Estado
fiscalizar essas ações para que não haja erro”
Militantes da Educafro protestam no
Ministério da Fazenda, em Brasília, em 2015
“Não tem como não ver como uma coisa
positiva, justamente porque nós participamos ativamente da construção da
resolução. Eu estudo numa universidade pública e é visível que tem pessoas que
fraudam a autodeclaração para se beneficiar de uma política de ação afirmativa.
Nosso papel, enquanto movimento negro,
é garantir que o Estado cumpra o seu dever de fiscalização. É importante dizer
que quando houve o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre as cotas
raciais, a comissão de verificação já era uma previsão do acórdão sobre as
cotas. Ou seja, foi declarado constitucional que tivesse uma verificação da
autodeclaração naquela época. A nossa cobrança é que para essa comissão
existisse de fato e não só como letra morta no papel.
O grande problema da autodeclaração é
que ela fica à disposição de quem se autodeclara. Isso é um problema quando se
trata de política pública, porque se você precisa efetivar os direitos das
pessoas de forma especifica, como é o caso das ações afirmativas, é necessário
que essa política atinja quem realmente é prejudicado na sociedade e é vítima
do racismo.
Uma grande contribuição dessa comissão
de verificação é trazer a referência ao fenótipo das pessoas, ou seja, pessoas
com melanina acentuada, isso é importante porque o racismo no Brasil tem algumas
características de perversidade. Nós, pessoas com pele mais preta, cabelo mais
crespo e com mais traços associados à negritude, são mais vitimadas pela
sociedade. E, existe uma enxurrada de estatísticas que demonstram esse fato. A
política de ação afirmativa vem para corrigir isso.”
Danilo Lima, coordenador de juventude
da ONG Educafro
“Em um País em que a cada 23 minutos um
jovem negro é assassinado, as pessoas sabem quem é negro”
Sancionada em 2014, a lei 15.939
assegura cota de 20% para a população negra em cargos efetivos e comissionados
de órgãos municipais em São Paulo
“Antes de mais nada, não é uma ideia
nova. Os comitês já existem em alguns estados e também aqui na prefeitura de
São Paulo. É uma reivindicação do movimento negro, que percebeu que só a
autodeclaração tinha um limite, já que havia pessoas brancas se declarando
negras. O comitê é necessário como uma forma de manter a legalidade do
processo, já que as pessoas fraudam. Por isso que percebeu-se que só a
autodeclaração não era suficiente.
A política de cotas é necessária porque
a sociedade é racista, então você precisa criar mecanismos de inclusão, mas se
as pessoas negras não estão se beneficiando desse mecanismo, não faz sentido.
É bom frisar que o racismo no Brasil
ele é pelo fenótipo – meu avô paterno era português, então por isso eu vou me
declarar branca? Não faz sentido. Eu tenho fenótipo de negra e sou
discriminada pela cor da minha pele e pela textura do meu cabelo. Então, o fato
da pessoa tem um avô negro, mas ela é lida como branca, ela tem que entender
que ela vai ter privilégios de pessoas brancas na sociedade.
O comitê, na verdade, é imprescindível
para manter a finalidade da política de cotas. O problema nunca foi do
movimento negro, isso é importante frisar. Aí depois a crítica vem para nós,
dizendo que nós estamos criando um tribunal racial em vez de discutir as
pessoas que fraudam o processo.
Viver num país em que o Rafael Braga
está preso por conta de um Pinho Sol e em que há políticas de encarceramento em
massa da população negra – isso é tribunal racial. Dizer quem é negro ou não é
só uma forma de manter a legalidade do processo quando há pessoas brancas
desonestas se declarando negras para acessar uma política de ação afirmativa.
As políticas afirmativas existem justamente porque as pessoas negras não
conseguem acessar esses espaços.
Direcionar a crítica para o movimento
negro é extremamente desonesto. Acho que em um país em que a cada 23 minutos um
jovem negro é assassinado, as pessoas sabem quem é negro. Na hora de manter os
lugares, essas dúvidas não existem. Elas só surgem quando tentamos criar
políticas efetivas de combate ao racismo”
Djamila Ribeiro, pesquisadora na área
de Filosofia Política e feminista. É secretária-adjunta da Secretaria de
Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.
“Temo que se abra um precedente para
colocar as ações afirmativas em xeque”
“Eu não vejo como positivo. A primeira
comissão montada na UnB causou também grande celeuma. No meio acadêmico, há
quase um consenso que foi uma coisa errada. Por quê? Qualquer comissão para
definir racialmente o candidato poderá utilizar critérios que, no limite, são
políticos e não científicos.
A raça não existe cientificamente. No
limite, é um critério político de definição. Raça é uma invenção, uma
construção. Qualquer comissão que for constituída vai usar também critérios
políticos e arbitrários. Do ponto de vista da antropologia, o critério
utilizado é o da autodeclaração. É o utilizado, por exemplo, para demarcar
comunidades remanescentes de quilombo.
A partir disso, eu entendo que o
critério que deveria ser adotado seria o da autodeclaração. Do ponto de vista
científico, esse número (de fraudes) é pequeno, residual. Não dá para pegar os
casos isolados e vê-los como regra.
Eu defendo o sistema de autodeclaração,
mesmo correndo os riscos de haver algum caso isolado que vai querer se
beneficiar dessa política. O perigoso é partir dessa comissão todo o sistema de
ações afirmativas e do sistema de cotas em especial perder credibilidade, ser
colocado em xeque em função. O que eu temo é isso, que abra-se um precedente
para que os opositores colocarem em que xeque a política em si”
Petrônio Domingues, professor no
departamento de História na Universidade Federal do Sergipe e estudioso da
história do movimento negro desde a década de 1990.
“Com as fraudes, percebemos que a
autodeclaração não era suficiente”
Protesto realizado pelo Coletivo
Negrada na UFES contra fraudes na autodeclaração racial
“Em fevereiro deste ano, o Coletivo
Negrada denunciou casos de fraude no sistema de cotas da Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes). No entanto, o Ministério Público Federal do Espírito
Santo arquivou a representação no âmbito criminal. O argumento é o de que na
lei que normatiza a política de cotas para ingresso nas universidades federais
e no edital do Vestibular da Ufes 2016 consta apenas a autoidentificação como
critério para o candidato usufruir do sistema de cota racial.
A autodeclaração é um critério adotado
no qual a população negra afirma seu pertencimento à identidade racial, pois
aos afro-brasileiros essa identidade por muito tempo foi negada e
subalternizada nas relações raciais. Com as fraudes, as declarações falsas de
pessoas não negras que se autodeclaram negras, percebemos que este critério não
é suficiente e precisa sim de mecanismos de fiscalização da autodeclaração para
que a lei da reserva de vagas com o recorte racial seja cumprida e os direitos
da população negra e indígena, garantidos.
Essa medida vem na perspectiva das
demandas dos movimentos negros, onde também os coletivos de estudantes negros
que atuam nas universidades têm denunciado as fraudes e pleiteado um mecanismo
de fiscalização que coíba tais praticas.
A aferição, antes de tudo, precisa
garantir os direitos dos verdadeiros alvos da lei de reserva de vagas. Estamos
falando de uma lei que vem para equiparar as condições de acesso dadas a
população branca à população negra e indígena. No Brasil, quando é para negar
direitos, não há dúvidas de quem são estes, exigimos que nossos direitos também
sejam garantidos. A composição da comissão deve ser idônea e estar de acordo
com isso.
Acredito que as fraudes nas
autodeclarações estão ocorrendo com total consciência e intenção de burla a
lei, não estamos falando de pessoas “negras de pele clara”, mas principalmente
de pessoas que pertencem a identidade racial “branca”, que se beneficia dela no
cotidiano e como se não bastasse, também quer usurpar o direito alheio.
É preciso antes de tudo reconhecer e
conhecer os aspectos históricos e sociais da formação do Brasil e da construção
da identidade brasileira, que marginalizam em sua maioria a população negra e
indígena e que até então não usufruem dos mesmos direitos.”
Mirts Sants, membro fundadora do
Coletivo Negrada, organização de estudantes e professores negros e negras no
Espirito Santo.
“As cotas desafiam a todos nós a
criar novos caminhos”
Frei David, representante da Educafro,
na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em 2015
“Esse é um assunto muito novo para toda
a realidade brasileira, negros e brancos, e especialmente para o governo e para
a justiça. Portanto, para canções novas, ouvidos novos, é o que diz o ditado
popular. Nós, afro-brasileiros, somos 53,7% do Brasil, mas a lei de cotas
só oferece 20% (das vagas)”. Frente ao volume grande de pessoas
afrobrasileiras, para nós é razoável que primeiramente sejam contemplados os
pretos e os pardos-pretos. Os pardos-pardos e os pardos-brancos serão
contemplados depois que os pretos e pardos-pretos estiverem contemplados. Aí
reside a chave do desentendimento.
A Educafro, de 2000 a 2010, defendia
radicalmente que o critério único deveria ser a autodeclaração, porque a
entidade percebia que de cada 100 afrobrasileiros, 80 tinham vergonha de se
definir como tal. Ora, até então no Brasil, negro levava a pior. Com a lei das
cotas, pela primeira vez, ser negro é vantagem, então, nós entendíamos que
autodeclaração iria ajudar aqueles 80% de afrobrasileiros que estavam no meio
do caminho de assumir sua negritude.
Daí nosso susto ao ver que alguns
brancos e pardos-brancos passaram a ver a lei como uma oportunidade de gerar
fraudes. É o caso do Itamaraty, em que um branco de olhos verdes que pegou sua
bisavó negra para roubar a nossa vaga.
As cotas não estão preocupadas com a
genotipia, mas unicamente compromissadas com a fenotipia. Portanto, não adianta
você falar que tem avós ou bisavós negros para querer ter o direito que você
não têm porque não é vítima de racismo.
Nós entendemos que o Brasil nunca levou
a sério o problema do negro. Quando agora aparecem as cotas, elas encontram
todos os órgãos desorganizados: justiça sem clareza, os administradores público
e nós do movimento social sem clareza do que fazer. As cotas desafiam a todos
nós a criar novos caminhos e novas pistas.
Portanto, esse é o momento mais rico
que temos no Brasil, onde todos nós estamos trabalhando intensamento para
buscar caminhos. Ninguém tem a verdade. De agora até setembro, teremos uns 10
concursos públicos, que serão o suficiente para saber onde estamos acertando e
errando.”
Frei David Santos, da ONG Educafro
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