Condutas
discriminatórias precisam de diagnóstico compatível com o crime, defende
psiquiatra
Date:
23/09/2016
in: Em Pauta
No dia 8 de setembro, o Comitê
Contra a Intolerância e a Discriminação, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), promoveu um debate sobre os efeitos da discriminação na área da
saúde. Participaram do debate Raquel Silveira, do Instituto de Psicologia da
UFRGS, e Telmo Kiguel, médico psiquiatra e coordenador do Projeto Discriminação
da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Esse projeto tem como
objetivo básico a apropriação do estudo pela Psiquiatria da Conduta
Discriminatória, cuja origem é basicamente psicológica e produz sofrimento
mental e/ou físico no discriminado podendo chegar, em casos extremos, ao
suicídio.
Por Marco Weissheimerm,
do Sul 21
Em entrevista ao Sul21,
Telmo Kiguel fala sobre esse projeto e defende a necessidade de uma maior
mobilização dos profissionais da saúde mental no debate sobre esse tema. Hoje,
na sociedade, assinala o psiquiatra, há somente duas instâncias que auxiliam a
inibir as condutas discriminatórias: a ação organizada dos grupos discriminados
e de seus apoiadores e o Direito que já tipifica como criminosa determinadas
condutas como o racismo. No entanto, ressalta, o psiquismo presente em todo o
processo discriminatório ainda requer um estudo mais aprofundado visando a
busca de um diagnóstico compatível com a tipificação de um crime dada pelo
Direito.
Sul21: Como
nasceu o seu interesse por esse tema do papel da ciência na prevenção de
condutas discriminatórias?
Telmo Kiguel: Eu sou
psiquiatra e trabalho com psicoterapia de orientação psicanalítica. Tenho
interesse neste tema desde o final da década de 60 quando me especializei em
Psiquiatria na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Naquela época, ainda
vigia uma definição do doente mental como alguém que fazia mal para outras
pessoas ou mal para si mesmo. Quando se descobriu o papel dos vírus e bactérias
no surgimento de certas doenças, a ciência se preocupou em desenvolver
procedimentos para detectar e neutralizar a ação desses microrganismos por meio
de vacinas, abrindo a partir daí a possibilidade da prevenção. Isso mudou
profundamente o mundo. Quando eu me formei, a especialidade mais procurada era
a pediatria. Com o desenvolvimento das vacinas, ela foi se tornando uma das
menos procuradas, pois os problemas de saúde das crianças diminuíram muito.
Pensando neste cenário, uma coisa
sempre me intrigou: se o discriminador faz mal ao outro, porque a ciência não
pode pensar numa prevenção a essa conduta? Há cerca de dez anos, consegui
instalar na Associação Brasileira de Psiquiatria esse projeto sobre
discriminação. A ideia é que, se não se definir e não se diagnosticar a conduta
do discriminador, especialmente do racista, do machista e do homofóbico,
continuaremos sem um trabalho de prevenção nessa área. Quando se isolou o vírus
da gripe e se desenvolveu uma vacina para a doença, isso provocou uma grande
mudança do ponto de vista da prevenção. Nunca mais tive uma gripe depois que
passei a tomar uma vacina. Faz mais de dez anos que eu não tenho essa doença.
“O conhecimento de uma definição
científica psiquiátrica ou jurídica pode inibir condutas sintomáticas ou
criminosas”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Em um mundo ideal se
definiria/diagnosticaria o discriminador e, uma vez definido, ele sofreria o
impacto desta definição e isso inibiria a sua conduta. Na década de 70,
homossexuais e suas lideranças pressionaram a ciência, por meio da Associação
Americana de Psiquiatria e a homossexualidade deixou de ser classificada
como doença. Posteriormente, aqui no Brasil, grupos discriminados pressionaram
a Ciência Jurídica e conseguiram, por exemplo, que a conduta
discriminatória racista e machista passassem a ser definida como crime.
O conhecimento de uma definição
científica psiquiátrica ou jurídica pode inibir condutas sintomáticas ou
criminosas. Um exemplo disso aparece no trânsito. Os motoristas conhecem a lei
que limita a velocidade: uns respeitam, outros não; na maioria das
vezes respeitam, mas, eventualmente, não. E é assim porque os motoristas
tomaram conhecimento desta lei.
Esse é o princípio que rege esse
projeto sobre as condutas discriminatórias. Eu posso olhar para ti dizer que
está com febre. Você me responde dizendo que não está com febre e eu insisto
que está e proponho que usemos um termômetro para tirar a dúvida. Em três
minutos a ciência decide se você está ou não com febre. Acabou a discussão.
Sul21: Na
sua opinião, há algo como um termômetro que pode medir e definir condutas
discriminatórias com essa precisão?
Telmo Kiguel: A
aceitação de que o termômetro é o grande juiz levou muito tempo. Tiveram que
descobrir o mercúrio, as suas propriedades, a capacidade de utilizá-lo como
elemento para fazer determinadas medições, etc. Houve um caminho da ciência que
foi percorrido aí. O que estou propondo é que a ciência seja acionada, como já
foi em outros episódios, para prevenir condutas discriminatórias. Quando a
ciência foi acionada por grupos discriminados, ela tomou iniciativas que
ajudaram a melhorar determinadas situações como ocorreu no caso dos
homossexuais e das mulheres. No entanto, como não há prevenção, o número de
ocorrências discriminatórias não diminuiu.
Sul21: Quando
você fala em ciência, aqui, está falando basicamente da Psiquiatria?
Telmo Kiguel: Já
existem várias propostas de definições a esse respeito. Uma delas foi formulada
pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora do livro Americanah,
romance vencedor do National Book Critics Circle Award e eleito um dos 10
melhores livros do ano pela New York Times Book Review. Ela escreve que a
maneira como o racismo se manifesta nos Estados Unidos mudou, mas a linguagem
não. Os autores de práticas racistas, diz ela, não são mais aqueles clássicos
“brancos malvados de lábios de lábios finos que aparecem nos filmes sobre a era
dos direitos civis”. “Então, se você nunca linchou ninguém, não pode ser
chamado de racista. Se não for um monstro sugador de sangue, não pode ser
chamado de racista”. A partir dessa avaliação, ela propõe: “Alguém tem de ter a
função de decidir quem é racista e quem não é. Ou talvez esteja na hora de
esquecer a palavra ‘racista’. Encontrar uma nova. Como Síndrome do Distúrbio
Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome:
leve, mediana e aguda”. Essa é a hipótese diagnóstica que ela propõe.
A necessidade do diagnóstico
deve-se ao fato de que essa é uma conduta que faz o outro sofrer. Na medicina
ou na saúde pública de um modo mais geral o que faz o outro sofrer pode ser um
vírus ou pode ser outra pessoa. Uma pessoa viciada em drogas sofre e faz sua
família e amigos sofrerem muito. Isso é uma doença. Se a minha conduta faz
outras pessoas sofrerem, ficarem deprimidas, etc., estamos lidando com uma
conduta doentia. A ciência baliza a maior parte dos nossos comportamentos, mas
não nos damos conta disso. Quem está no limite da doença ou no limite da lei,
está pensando que tem sempre que driblar a lei e tentar esconder os sintomas da
doença. Um diagnóstico pode interromper esse tipo de conduta. É muito comum
pessoas que têm um diagnóstico de uma determinada doença mudarem de vida.
Alguém passa a usar óculos porque teve um diagnóstico de algum problema de
visão e teve que mudar sua conduta por causa dele. É assim. A gente tem um
diagnóstico e muda.
Sul21: Além
da dimensão individual de posturas discriminatórias como racismo, machismo e
homofobia, não há também uma dimensão social desses problemas que deve ser
levada em conta para a obtenção desse diagnóstico? Fala-se muito hoje que
estamos vendo o crescimento de uma cultura do ódio no Brasil. Não estamos,
neste sentido, também às voltas com uma espécie de enfermidade social?
Telmo Kiguel: Essa
dimensão social, para os propósitos da questão que estou propondo, é
secundária. A medicina não atacou a gripe, mas sim o vírus da gripe. Quem cria
e mantém o racismo são os racistas. Eles seriam os vírus, os agentes causadores
da doença. Mesmo no caso do racismo institucional, há pessoas que praticam
determinados atos que fazem com que esse racismo exista. O meu foco é a práxis,
é onde vou agir. Não estou dizendo que não pode haver todo um grupo contaminado.
Pode. Há grupos assim. Mas precisamos definir uma unidade sobre a qual agir.
O discriminador, quando adulto,
continua funcionando como uma criança imatura que rejeita comer determinado
alimento que nunca experimentou, por puro preconceito. Esse discriminador pode
ser um gênio em matemática ou física, pode ser o melhor jogador de futebol do
mundo, mas ser imaturo. O ser humano não amadurece de forma homogênea, mas sim
por ilhas. Todos nós temos essa característica: somos mais maduros em
determinadas questões e menos em outras.
Sul21: A
postura discriminatória então, na sua avaliação, estaria associada a uma
espécie de imaturidade. Isso valeria para diferentes formas de discriminação
como machismo, racismo e homofobia?
Telmo Kiguel: O
imaturo ao qual estou me referindo aqui é uma pessoa que funciona segundo
padrões da sua infância ou muito mais antigos. Tem gente que resolve pautar seu
comportamento por um livro escrito há cerca de dois mil anos. Não é a toa que
são chamados de fundamentalistas. A Bíblia é um grande livro que ajudou a
ordenar o mundo e torná-lo mais civilizado, mas não é adequado hoje para ser
adotado como um guia de comportamento. Tampouco é um acaso que alguns
conservadores na política sejam discriminadores. Há pesquisas mostrando que
países mais religiosos e menos laicos têm mais discriminação.
Sul21: Na
psiquiatria, há certas condutas que já estão tipificadas como é o caso da
psicopatia, por exemplo. Qual seria a fronteira, na sua opinião, entre um
discriminador e um psicopata?
Telmo Kiguel: A
psicopatia é considerada um distúrbio de personalidade anti-social. Um dos
objetivos centrais desse projeto é obter um diagnóstico compatível com o crime.
Não sei ainda qual será esse diagnóstico. Dizer que alguém é um discriminador
não é um diagnóstico. A palavra “racista” está tão naturalizada que não é mais
um diagnóstico compatível com o crime que ela expressa. Chamar alguém de
psicopata já parece um diagnóstico mais compatível com o crime.
A ideia é investigar o agente
causador, defini-lo e diagnosticá-lo. Creio que só quando se conseguir
defini-lo começarão a diminuir as ocorrências. A educação, por si só, não é
suficiente para prevenir. No Uruguai, uma pesquisa sobre a participação de
mulheres na política mostrou que os homens com nível de educação superior são
mais resistentes à participação feminina em cargos de decisão política.
Enquanto 64% das mulheres, com ensino superior, responderam que deveria haver
mais mulheres legisladoras e ministras, apenas 49% dos homens, com o mesmo
nível de formação, manifestaram-se favoravelmente a essa proposta.
Aqui no Brasil, os conservadores
não querem que se discuta questões de gênero nas escolas. No tempo da ditadura,
uma das frases que era pichada nos muros era “A palavra cão não morde”. Se eu
falar em gripe, você não ficará gripado por causa disso. Os conservadores acham
que, se os professores falarem em homossexualidade nas escolas, os estudantes
vão se tornar homossexuais. Isso é assim porque dentro dos templos religiosos
que eles frequentam, a homossexualidade é definida como algo perverso e imoral
e o papel das mulheres é ficar numa posição secundária em relação ao homem.
Para muita gente, a homossexualidade ainda é um tabu que não pode ser objeto de
conversas nas escolas.
A psiquiatria ainda não definiu nenhum
diagnóstico para essas condutas discriminatórias. E, como já afirmei, esse
diagnóstico só terá valor se ele for compatível com o crime. Alguém que é
claustrofóbico, por exemplo, tem medo de andar de elevador e opta por subir as
escadas quando precisa. Mas ele não sai dando pontapés no elevador, por ter
medo de andar no mesmo. Por analogia, chamar determinada conduta de “homofobia”
me parece uma denominação atenuada que acaba beneficiando o discriminador. No
caso de alguém que ataca e é capaz de dar um tiro ou esfaquear um homossexual,
isso está muito além de uma expressão de medo. Nós podemos ter medo de elevador
e subir pelas escadas, como referi. O nome desse tipo de conduta é outro. Esse
dito homofóbico acha que o problema está no homossexual e não reconhece que
está nele próprio. Nós tempos problemas e doenças que reconhecemos e sabemos
que temos, mas podemos ter doenças que não reconhecemos porque não conseguimos
enxergá-las. No nosso psiquismo também temos situações, sintomas e doenças que
a gente não reconhece que tem. Até o momento acreditamos que homofobia é o
que se passa com o homossexual enquanto não se assume como tal ou “enquanto não
sai do armário”. Este é realmente um tempo que há medo, de assumir a sua
própria homossexualidade.
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