O traço e a marca de
Luiza Bairros: um arquivo para o Dia Internacional da Mulher Negra
Publicado em:
26/07/2016
em: Mulher Negra
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“O meu material é minha
cabeça e meu gogó”.
Makota Valdina
A escrita, a memória, o
arquivo
Enviado por Rosane
Borges via Guest Post para o Portal Geledés
No
último 12 de julho recebemos a infausta notícia da morte da ex-ministra e
liderança do movimento negro, Luiza Bairros. A dor da perda e a recusa do
indesejável fato se juntaram a um sentimento de que Luiza, como tantas outras,
nos deixou muito cedo. O desconhecimento público do estado de saúde da
ex-ministra, que optou por partilhar do diagnóstico com um círculo restrito de
amigos (escolha frequente em casos similares), acentuou essa percepção. Como o
desfazer das nuvens pelo vento, Luiza se foi abruptamente, disseram alguns; a
sua passagem não possibilitou despedidas antecipadas, reforçando ainda mais a
ideia de que a efemeridade e a transitoriedade da vida são inexoráveis.
Se
a vida é efêmera e a obra é perene, de que modo dar continuidade ao legado de
Luiza Bairros? Em que sentido podemos postular a existência de uma obra em sua
trajetória? Como preservá-la e difundi-la?
As
homenagens em fluxo contínuo nas redes sociais e em outros espaços a Luiza
deram destaque a uma pequena mostra do seu pensamento: “somos herdeiros de uma
luta histórica iniciada por muitos antes de nós”. Eis um enunciado que oferece
endereço de resposta para as interrogações acima formuladas. Referi em outros
momentos que, se somos “a letra da palavra que nunca se completa”, estamos
todas(os) engajadas(os) na tarefa inadiável de (re)construir, letra a letra,
uma História que não finda, mas que reclama por alguma representação. História
que Luiza Bairros escreveu de modo a inventar um país e um mundo para que
pudéssemos existir, como bem lembra a ativista e feminista Vilma Reis.
É
possível, assim, inserir a letra de Luiza num continuum em que a escrita é
plataforma sobre a qual construímos história e memória. De forma contundente,
sem nunca abandonar o refinamento, esta militante de proa concebeu a inserção
da luta antirracista e anti-sexista na dinâmica do espaço público como um
imperativo ético e uma urgência política, atribuindo novas significações ao
mundo por meio da significação que ela própria enseja. Quando falamos em obra,
estamos falando do jogo do ofício de escrever, da tarefa de dotar as coisas do
mundo em coisas de linguagem, plenas de sentido. É preciso alertar para a noção
de escrita que move este texto-homenagem: a escrita não é apenas o que se
inscreve sobre o papel ou a tela; é, antes, uma operação que indica uma
diferença que rompe com o nebuloso e estabelece uma marca que singulariza o que
antes era indecomponível. Sob essa ótica, a escrita tem um papel fundante, de
fixação das marcas do ser, uma vez que sem ela o “ser humano não se diria
enquanto ser humano.” Pode-se, desse modo, falar de uma obra de Luiza Bairros,
posto que em sua trajetória de vida ela não se conformou em pôr em marcha a
ordem discursiva já em curso, mas instaurou uma outra com um traço singular,
pontilhado de perspicácia, inteligência e compromisso.
Ora,
se a escrita institui um traço, uma singularidade por meio de qualquer suporte
(oral, impresso, gestual, corporal), uma das tarefas primordiais para as
mulheres negras no tempo presente é captar o traço singular de Luiza Bairros,
que deixou marcas, filetes de significação, no espaço público (seja no âmbito
da militância negra e feminista, seja na esfera do poder público ou de
organismos internacionais), fixando os vestígios de sua escrita nas diversas
iniciativas que foram aventadas e consolidadas em prol da população negra no
Brasil.
Gaúcha
de Porto Alegre, Luiza Bairros era formada em Administração Pública e de
Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestra em
Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em
Sociologia pela Universidade de Michigan (USA). Radicada em Salvador desde
1979, foi uma liderança do Movimento Negro Unificado (MNU); trabalhou em
programas das Nações Unidas contra o racismo, em 2001 e em 2005 e foi titular
da Secretaria de Promoção da Igualdade Social da Bahia, de 2008 a 2010, e
ministra-chefe da Secretaria de Políticas Públicas da Igualdade Racial, de 2011
a 2014. Além disso, foi uma generosa, dedicada e primorosa pesquisadora da
história do movimento negro brasileiro e de seus personagens, empenhando-se em
sistematizar o legado da feminista negra Lélia Gonzalez.
Dia
Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha: Luiza Bairros
presente!
Neste
25 de julho de 2016, pleno de atividades Brasil afora, Dia Internacional da
Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e de Tereza de Benguela, precisamos
percorrer a trajetória do traço de Luiza para, a partir dele, continuarmos a
escrita da palavra que não se completa, numa perspectiva diaspórica,
internacionalizada, da qual ela foi uma importante voz. Com Tereza de Benguela
e tantas outras lideranças latino-americanas e caribenhas, o dia de hoje
convoca uma reatualização da luta das que vieram antes nós, inserindo Luiza
nesse repertório de antecedências e fundamentos, abrigando a sua obra no
arquivo do mundo, sobrelevando seus gestos para a mudança sociorracial e de
gênero no Brasil.
No
“I Seminário Biopolítica e Mulheres Negras: práticas e experiências contra o
racismo e o sexismo”, realizado pelo Ministério Público (MP) de Salvador na
semana passada (20), a mesa de abertura versou sobre “Escrevivência negra como
difusão da intelectualidade afro-brasileira”. Na ocasião, Makota Valdina,
Conceição Evaristo e eu propugnamos que é preciso dar visibilidade ao traço que
compõe a escrita das mulheres negras, imprescindível que é para a composição da
obra humana, constituída por uma rede intrincada de iniciativas exitosas que
nem sempre conseguem dar nome e protagonismo a essas mulheres.
Se
“não se pode interpretar a obra a partir da vida, mas pode-se, a partir da
obra, interpreta a vida”, a obra de Luiza nos dá a possibilidade de interpretar
um comum que atravessa as nossas vidas, solicitando, num movimento simultâneo,
que construamos, a partir desse comum, algo singular capaz de nos inserir no
mundo com uma marca que faça diferença e (re)inaugure a humanidade inteira.
Sabe-se que uma obra requer armazenamento (inscrição, fixação) e circulação –
modalidades que compõem o arquivo, embaladas por um fluxo dinâmico, em estreita
afinidade, distante das dicotomias que enxergam alternâncias.
A
cosmovisão africana adota a metáfora do rio e da casa para ilustrar,
respectivamente, as noções de circulação e de fixação, ofertando elementos
fundamentais para a instauração da obra humana. O rio é um dos símbolos mais
poderosos que ilustra a efemeridade e transitoriedade da vida, aquilo que
circula. A casa sintetiza o sentido do que acomoda e acolhe. O rio corresponde
a evanescência da matéria e a irreversibilidade corrosiva e trágica do tempo. A
casa concerne ao abrigo e à permanência. Não há rivalidade entre eles, ambos
laboram para a constelação simbólica do fazer humano.
Nessa
inevitável articulação entre rio (o que circula, o que se propaga) e casa (o
que se armazena, se fixa e se inscreve/escreve) encontramos as trilhas abertas
para a reformulação do arquivo do mundo, registrando nele uma história ainda à
espera de ser escrita e/ou propagada, porque, como nos ensina poeticamente Aime
Cesarie, “não é verdade que a obra do homem está acabada, que não temos nada a
fazer no mundo, que parasitamos o mundo, que basta que marquemos o nosso passo
pelo passo do mundo(…) ao contrário, a obra do homem apenas começou (…).”
E,
sem sombra de dúvidas, Luiza Bairros foi uma notável mulher negra que soube,
com maestria, dar continuidade a uma obra que apenas começou, mas que já deixou
marcas indeléveis para a mudança de curso da história. - Leia a matéria
completa em: http://scl.io/QdIJ5z6L#gs.ZdaEaYk
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