Relatório
sugere que Brasil reconheça crime de escravidão
Publicado
em: 01/12/2015 GELEDES
Comissão
Nacional da Verdade quer pedido oficial de desculpas aos negros
POR EVANDRO
ÉBOLI, do O Globo
O governo brasileiro deve um
pedido formal de desculpas e precisa reconhecer, em decreto presidencial, seu
envolvimento oficial no crime de escravidão, que é imprescritível. Essa é uma
das recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão
Negra do Brasil, que será apresentado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
em Brasília, amanhã, quarta-feira. O documento tem 316 páginas e traz um amplo
e detalhado cenário histórico e investigativo sobre esses episódios.
O relator do texto, o procurador
do Trabalho Wilson Prudente, concluiu que o Império do Brasil, o Reino de
Portugal e a Igreja Católica incorreram em práticas criminosas contra os negros
e em tipos penais como genocídio e crimes contra a humanidade. O relatório pretende
acabar com mitos sobre algumas questões, segundo o relator, como a de que a
República no Brasil veio acompanhada do trabalho livre, que a escravidão era
legal e que o ambiente era cordial e que os negros já eram escravos na África.
Seu texto conclui que a verdadeira abolição da escravatura não se deu em 1888,
com a Lei Áurea, mas ocorreu em 1910, com a Revolta da Chibata, liderada por
João Cândido.
— É um mito acreditar que a República veio
acompanhada do trabalho livre — disse Wilson Prudente.
Ao tratar sobre o pedido de
desculpas, Prudente recomenda que o Estado brasileiro desça de seu “pedestal de
arrogância” e reconheça que cometeu esses crimes contra os negros.
“Mediante tal reconhecimento que
formalize através de instrumentos legais o seu necessário e tardio pedido de
desculpas. A recusa do Estado em se curvar a tais providências continuará a
transmitir uma ideia de franca e consciente cumplicidade com aqueles fatos do
passado de repercussões tão similares ainda nos nossos dias” — conclui o
relator em seu texto.
O relatório, uma iniciativa da
OAB, propõe, na impossibilidade de um decreto, que o governo Dilma Rousseff,
envie ao Congresso Nacional um projeto de lei reconhecendo o envolvimento do
Estado brasileiro na escravidão. O relatório é apresentado como um documento
que está reescrevendo algumas das páginas mais horripilantes da História do
país.
“Se houve algum colorido a ser
identificado nessas páginas era o vermelho do sangue, que cobria a pele preta
daquela gente africana. Se havia algum som que pudesse ser audível, era o grito
de dor de quem era submetido a torturas tão cruéis. Se há fato abominável
ocultado dos livros didáticos e dos manuais de história de todos os níveis de
ensino, é que o Império do Brasil cobrava taxas com natureza eminentemente
tributárias para praticar a tortura em corpos africanos. Pretendemos com esse
Relatório que o Estado brasileiro desça de seu pedestal de arrogância e
reconheça de forma pública e oficial que praticou tais crimes”.
REDE DE CONEXÃO CRIMINOSA
Wilson Prudente relata que
escravidão implicou numa rede de conexão criminosa. O primeiro crime praticado
era o sequestro, “arrancando as pessoas africanas de suas famílias e
comunidades para jamais serem devolvidas”. Era um sequestro continuado.
Enquanto aguardavam os navios negreiros, já prestavam aos sequestradores
trabalhos na agricultura.
— A escravização já se iniciava
em território africano, com maus tratos permanentes e o aprisionamento para o
resto da vida — diz Prudente.
O relator conta que o homicídio
estava presente em todas as fases, acompanhado dos crimes de tráfico de
pessoas, escravidão, tortura, estupro e abusos sexuais. O relatório associa
esse passado ao presente no Brasil.
“A extensão dessas práticas
criminosas configuravam genocídio e crimes contra a humanidade. Aproximadamente
um século e três décadas após a Lei Áurea a sociedade brasileira fez o seu
ingresso na pós modernidade, mas vive atormentada ainda pelos fantasmas da
escravidão. O mito da escravidão legal e cordial foi sucedida pelo ainda existente
mito da democracia racial. A cortina de fumaça em que consiste essa
mitologização não afastou e não desligou a sociedade brasileira pós moderna de
seu passado escravista” — diz o relatório.
Os sequestros das primeiras
vítimas, diz o relator, implicavam em luta e violência, o que acarretava
mortes. Era uma conduta em Portugal da época. A Igreja Católica tornou o
comércio negreiro um monopólio de Portugal, através da Bula Papal.
“Como justificativa a Igreja
representava o argumento, que apesar de terem os seus corpos escravizados, os
negros teriam as suas almas salvas, uma vez que desde o início foi obrigatório
o batismo de cada vítima do tráfico negreiro. Batismo efetivado mediante uma
taxa que por sua natureza imperativa tratava-se de um tributo, temos nesse caso
o crime de homicídio, portanto consubstanciado em matar membros do grupo,
praticado pela Monarquia Portuguesa, através de seus prepostos, em associação
com a Igreja Católica, que lhe deu suporte normativo e justificativa filosófica
e religiosa”.
ESPERA POR PRONUNCIAMENTO DO
VATICANO
Prudente afirma que o Vaticano
dos nossos dias ainda não se pronunciou sobre esse passado da Igreja e espera
que o Papa Francisco, por sua afinidades com grandes causas da Humanidade,
também peça desculpas formais desse passado.
“Esse Relatório possibilitará ao
Vaticano e em particular ao Papa Francisco a possibilidade de se redimir do
silêncio cúmplice, que até hoje a Santa Igreja tem ostentado em relação ao
tráfico negreiro, no qual a Igreja de Roma se envolveu de corpo e alma”.
O documento trata de vários
outros episódios correlatos, como a alforria concedida a escravos para lutar na
Guerra do Paraguai, com a dizimação das tropas brasileiras. O presidente dessa
Comissão da Verdade, o advogado Humberto Adami, também um ativista dessa causa,
entende que o pedido de desculpas é o mínimo a ser feito pelo governo
brasileiro. Para ele, o que ocorreu com os negros naquele período, deveria ser
motivo de comoção mundial. Adami diz que o racismo está presente nos dias de hoje
e lamenta não haver uma presa no país por ter cometido esse tipo de crime.
— É um trauma coletivo reduzido
na sociedade brasileira. E precisamos trazer isso à tona. O racismo está
presente em cada lugar que você vai. Na indústria, nos bancos públicos e privados,
nos partidos políticos. Há um racismo que é violento. Só temos uma ministra
negra nesse governo (Nilma Lino, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos
Direitos Humanos). Isso não reflete a cara do Brasil — diz Adami.
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