"No
Brasil os negros são livres, mas não têm dignidade", comenta protagonista
de "Faroeste Caboclo"
Estefani Medeiros
Do UOL, em São Paulo
Do UOL, em São Paulo
27/05/201305h00
Ze Carlos Barretta/Folhapress ILUSTRADA
O ator Fabricio Boliveira diz que João de Santo
Cristo de "Faroeste Caboclo" é um espelho do povo brasileiro
Dos nove
minutos de "Faroeste Caboclo", um verso costura a história de
Fabrício Boliveira a João de Santo Cristo, personagem da música do Legião
Urbana que é apresentado ao público na estreia da adaptação cinematográfica
homônima nesta sexta (31). Migrante nordestino da Bahia, Boliveira também
sofreu "discriminação por causa de sua classe e sua cor".
"Tem
uma coisa da dignidade do João que acho que é quase rara no Brasil e consigo me
ver um pouco", diz Boliveira em entrevista ao UOL. "Que é de
uma família negra e que de algum jeito tem a autoestima resolvida. Lembro que
quando era pequeno, a minha mãe falava: 'Fabrício, veste a camisa! Já viu preto
sem camisa?'. É muito forte você crescer com isso. Por que eu sou preto preciso
vestir uma camisa e representar alguma coisa que não sou? Isso é uma coisa que
era um comentário da minha mãe. Mas por outro lado, me deixava muito
fortalecido, muito seguro das minhas escolhas, das minhas opções."
Trailer de "Faroeste Caboclo"
O
protagonista acredita que apesar de o Brasil ser um país democrático, o
preconceito racial está enraizado no dia a dia, e o filme mostra isso em
diferentes cenas. Em uma delas, depois de conhecer João, o senador Ney (Marcos
Paulo), pai de Maria Lucia (Isis Valverde), questiona se a filha está metida em
confusão. De prontidão ela responde com uma pergunta: "Só porque ele é
preto?".
"O
João traz isso muito forte na dignidade dele. Que é o que falta no Brasil, é
uma diferença entre liberdade e dignidade. Aqui no Brasil, os negros são
livres, mas não têm dignidade, não têm condição de sustento básico para olhar
horizontalmente para alguém", comenta o ator em tom de desabafo, como se
quisesse falar com a presidente.
Em
"Faroeste Caboclo", o baiano se transforma em um anti-herói de cordel
inspirado no bang bang do sertão brasileiro. O diretor René Sampaio disse que a
escolha de Fabrício ajudou a dar um contexto político ao filme, o que o ator
concorda.
"Era
mais 'West Side Story' no começo, eu achava. Uma briga de gangues jovial",
comentou, com gestos expressivos em conversa em São Paulo na última semana.
"Mas esse filme se passa no Brasil, né? Nós temos muitas questões para
poder abordar e não tem por que não abordar e ser um filme leve. Foi bacana
contribuir com minhas experiências pessoais para fazer um filme mais
profundo."
Para ele,
o amor entre Maria e João é um "exemplo de como lidar com as diferenças e
atravessar o preconceito para mostrar o que está atrás dos olhos dos
outros".
Segurando uma Winchester 22 ao lado de Isis
Valverde (Maria Lucia) em cena do filme
"É o
caminho mais óbvio que a gente tem pra sobreviver nesse mundo. Uma linda
história de amor que parece que não pode dar certo, que no filme não dá certo,
mas é um mito de como poderia dar certo um pouco mais a frente. O filme não é
derrotista e sim abre possibilidades e questões. Muitos caminhos podem ser
atingidos antes que a gente puxe uma arma e dê um tiro em alguém só por uma
diferença ou por acreditar em um mito darwinista que é totalmente
obsoleto."
René
disse que não procurou estereótipos nos atores que poderiam viver o
carpinteiro. Mas Fabrício conta que a ideia da mãe de Renato, Carmem
Manfredini, era que o papel fosse de um ator mulato. "A gente visitou a
casa dela, falamos muito sobre o Renato. E foi engraçado que ela questionava o
fato do João ser negro. Por que ela achava que o Renato tinha pensado num ator
mestiço. A ideia do Renato era que o João fosse o Ângelo Antonio e a Maria
Lucia, a Letícia Sabatella, a princípio. Então ela ficou com esses personagens
na cabeça, mas eu rapidamente disse pra ela que o que importava era ter um ator
que os olhos brilhassem, e os meus estavam brilhando por essa história. Então,
eu assumia a responsabilidade. E foi muito bom encontrar ela na pré-estreia em
Brasília, ela estava mega realizada e feliz."
Faroeste Caboclo (2012)24 fotos
11 / 24
Os atores
Isis Valverde e Fabrício Boliveira visitam a casa da mãe de Renato Russo, Dona
Carminha Divulgação
Ator
acredita que João de Santo Cristo é um alter-ego de Renato Russo
Boliveira
conta que o contato com as informações passadas pela família de Renato ajudaram
a criar sua teoria de que o personagem da música era um alter-ego do líder da
Legião Urbana. "É uma interpretação minha. O João como trovador solitário,
uma coisa que o Renato também era. A diferença é que o Renato estava numa
situação diferente em Brasília. Era filho de um militar, envolvido com
política, um cara que tinha uma boa condição social, era branco e nascido no
Rio de Janeiro, ou seja, estava lá em uma boa situação. E acho que na década de
80 ele se questionou como seria se ele fosse um dos caras que ajudou a
construir Brasília, um candango, se fosse negro, nordestino e pobre. Ele se
questionou como essa cidade tratava essas pessoas, como a cidade o tratava na
década de 80. E trazemos isso pro hoje com o filme. Quem são os Joãos que estão
nas cidades satélites e espalhados por esse Brasil?".
Acho que na década de 80 o Renato
se questionou como seria se ele fosse um dos caras que ajudou a construir
Brasília, um candango, se fosse negro, nordestino e pobre
Boliveira,
sobre João ser alter-ego de Renato Russo
Para
chegar a essas conclusões, Boliveira diz que foi essencial o processo de
imersão na obra do poeta. "Foi muito bonito poder dialogar com um artista
como o Renato Russo, poder cruzar meu trabalho com o trabalho dele. Para mim, é
a maior honra de todas. E, é claro, mexer com o que está na mente das pessoas.
Materializar um mito, isso é muito forte também. Para mim é inusitado, eu nunca
fui mito", comenta entre risos.
Outro
ponto mencionado é o fato de João tê-lo feito crescer como protagonista.
"É muito bom ser também corifeu de uma história, poder contar uma história
com meu recorte, com meu olhar. Tenho mais de doze anos de carreira e é a
primeira vez que protagonizo. Acho que já estava preparado pra falar um
pouquinho das minhas experiências misturadas com outras histórias. Espero que
venham muitos outros."
Boliveira
se prepara para viver Skunk em filme sobre o início do Planet Hemp
No
segundo semestre, Boliveira deve continuar contando histórias, mas dessa vez em
filme sobre Skunk,
fundador e melhor amigo de Marcelo D2 no Planet Hemp. O longa é dirigido por Jhonny
Araújo e deve chegar aos cinemas no próximo ano.
"A
gente teve umas pequenas reuniões e leituras de texto com o Marcelo, ele
contando histórias incríveis do Skunk. Estou excitadíssimo", comenta.
"E é um filme que abre outras discussões. O filme fala sobre o começo da
banda, da história do Planet Hemp, do Planeta Maconha, dentro do Brasil,
superousados, querendo discutir a droga, o crime aliado a droga. Têm histórias
de banda, da tentativa, da amizade dos dois. O Marcelo sempre fica emocionado
quando ele fala do Skunk, o filme é quase uma homenagem ao Skunk. Quando a
banda faz sucesso o Skunk morre, então é tipo: 'tudo que nós somos hoje e o
cara não ta aqui para ver'. Para eles é muito forte."
Fabrício,
que já atuou em "Tropa de Elite", é um rosto conhecido da televisão
brasileira. Seu último trabalho foi o gari Cleiton na série
"Subúrbia". E apesar de já ter quase doze anos de carreira, o que
incluiu atuações nas novelas "Sinha Moça" e "A Favorita", é
no ano que termina em um número de azar que Fabrício concentra a sua maior
parte de trabalhos nas telonas. Até o início de 2014, Boliveira viverá Milton
Nascimento, atuará em "Nise da Silveira: Senhora das Imagens" e terá
feito participações na cinebiografia do carnavalesco Joãosinho 30 e da banda
Calypso. Ainda existem especulações de que pode viver Pelé no filme sobre o
jogador.
Faroeste Caboclo; fotos das
pré-estreias no Rio e em São Paulo30 fotos
23 / 30
20.mai.2013
- Giuliano Manfredini, filho do cantor Renato Russo, posa ao lado dos atores
Antonio Calloni, Ísis Valverde e Tulio Starling antes da pré-estreia de
"Faroeste Caboclo", inspirado na música da Legião Urbana, em São
Paulo Leia mais Francisco Cepeda e Caio
Duran/AgNews
0 Comentários