O milionário negro
que a história dos
EUA esqueceu
BBC BRASIL.com
Jeremiah G. Hamilton desapareceu da História cerca de 20 anos após sua morte,
em 1875. Mas em vida, ele marcou época como o único corretor negro em Wall
Street, centro financeiro de Nova York, e o único milionário negro nos Estados
Unidos no século 19.
"Ele foi
mencionado na imprensa apenas quatro vezes nos últimos 100 anos, mas três
dessas menções contêm erros: uma pessoa achou que ele era branco, que tinha se
bronzeado em uma viagem e, por isso, pensaram que era negro. Outra achou que o
nome dele no texto que estava sendo editado era um erro, porque não poderia
haver um milionário negro em Nova York naquela época", disse à BBC o
historiador australiano Shane White, autor o livro (ainda sem título em
português).
Apesar de ter acumulado uma fortuna equivalente a US$ 250 milhões em valores
atuais, Jeremiah Hamilton sumiu da história. Foto: www.jeremiahhamilton.org
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No auge de sua
carreira, no entanto, ele teve diversas menções nos jornais e em arquivos de
tribunais, onde constavam cerca de 50 processos que o envolviam como réu ou
como pleiteante.
Hamilton nasceu em
1807, mas, segundo White, sua origem exata não é conhecida. Jornais da época
dizia que ele era filho de negros livres em Richmond, no Estado de Virgínia. No
entanto, seu atestado de óbito dizia que ele nasceu em alguma ilha do Caribe e
que seus pais eram de Port-au-Prince, no Haiti.
"Apesar de as
duas histórias serem diferentes, eu tenho documentos assinados por ele
comprovando ambas. Enquanto eu escrevia o livro, a depender da parte em que
estava, eu acreditava mais em uma ou na outra. No fim, estou mais inclinado a
acreditar que ele veio do Caribe", afirma o escritor.
De acordo com a
pesquisa de White, Hamilton era culto, fluente em francês e muito ambicioso.
"Ele era um
homem muito esperto e inteligente. Tudo o que fez foi para obter vantagem.
Quanto mais eu trabalhava com sua história, mais tirava o chapéu para ele. Era
o tipo de pessoa que você adoraria conhecer, mas precisaria manter a carteira
bem guardada enquanto conversava com ele."
'Príncipe das
trevas'
A escravidão acabou
na cidade de Nova York em 1827, mas tanto o passado escravista quanto as
questões raciais permaneceram sendo assuntos difíceis muito tempo depois do fim
da Guerra Civil. O historiador diz que Hamilton teve que lidar com o
preconceito todos os dias, mesmo que "não tivesse uma empatia muito grande
para com outros negros americanos".
Sua maneira de
enfrentar o racismo era fazendo o oposto do que a maioria dos pioneiros na
história afro-americana fazia, diz White. Em vez de ser discreto, Jeremiah
Hamilton exibia sua riqueza.
"Ele chamava
atenção no 'mundo branco' de Wall Street. E chamava mais ainda porque usava uma
longa peruca negra, que, aparentemente, impressionava bastante as pessoas.
Infelizmente, nunca consegui encontrar uma foto", conta o historiador.
"A mansão em
que ele vivia em Nova Jérsei ficava em uma propriedade de um milhão de metros
quadrados no topo de uma colina, tinha 10 quartos e um salão de baile, dois riachos
e mais um lago com peixes, além de uma área onde se podia caçar codornas."
Aos 28 anos,
Hamilton engravidou uma garota branca, Eliza Jane, que tinha entre 13 e 14
anos, o que chocou ainda mais a sociedade da época. Os dois casaram-se e
viveram juntos por 40 anos, até a morte de Hamilton. Eles tiveram dez filhos no
total.
No mundo
financeiro, Hamilton ganhou o apelido de "Príncipe das Trevas", pela
cor de sua pele e porque ele era considerado ardiloso e bastante astuto nos
negócios.
"Ele sofria
discriminação, sim. Nos anos 1830, as companhias de seguros de Nova York se
juntaram e decidiram não assegurar nenhum de seus empreendimentos. Em 1843, a
New Board, segunda bolsa de valores de Nova York, aprovou uma resolução dizendo
que qualquer pessoa que comprasse ou vendesse ações para Hamilton seria
expulso", afirma White.
Hamilton x
Vanderbilt
Hamilton não era
santo. Seu caminho até a fortuna envolveu práticas ilegais, como falsificação
de dinheiro.
Em 1828, aos 21
anos de idade, ele teria levado uma carga de moedas falsificadas do Canadá até
o Haiti, a serviço de um poderoso grupo de comerciantes nova-iorquinos.
Mas autoridades
haitianas descobriram o esquema. Mesmo não tendo sido capturado, um juiz o sentenciou
à morte por a fuzilamento e panfletos foram espalhados pela ilha oferecendo uma
recompensa a quem o capturasse.
Hamilton
escondeu-se nas docas de Port-au-Prince por 12 dias, até entrar em um navio
para Nova York.
Após o Grande
Incêndio de 1835, que destruiu parte da cidade, Hamilton lucrou bastante com a
tragédia em seu escritório em Wall Street, diz White. Levando vantagem sobre
pessoas que tinham perdido suas casas, ele acumulou cerca de US$ 5 milhões (R$
17 milhões) em valores de hoje.
Meses depois, ele
começou a investir no mercado imobiliário em ascensão da cidade, comprando
diversos terrenos em áreas que se valorizariam nos anos seguintes.
"Hamilton
comprou a propriedade em que vivia de uma pessoa que não tinha o direito de
vendê-la. Na Inglaterra, ele seria conhecido como um , um pequeno criminoso que
lida com bens ilícitos no mercado negro. Era alguém que estava sempre tentando
conseguir as coisas com menor preço e fazer as coisas de maneira levemente
ilegal", afirma o historiador.
No período em que
atuou na Bolsa de Valores, Hamilton ficou famoso por sua esperteza e
conhecimento dos mercados, o que tornava difícil que outros corretores levassem
vantagem sobre ele.
Em 1850, ele também
ficaria conhecido por enfrentar Cornelius Vanderbilt, um dos magnatas mais
ricos e poderosos dos Estados Unidos, pelo controle da companhia de trens
Accessory Transit Company. Hamilton tinha ações na empresa, mas sequer poderia
sentar-se em um de seus trens, por ser negro.
Quando morreu, em
maio de 1875, os obituários em jornais diziam que Hamilton era o negro mais
rico do país, com uma fortuna de US$ 2 milhões, o que equivaleria a mais de US$
250 milhões em valores atuais.
Mas por que ele
desapareceu da história de Wall Street? E como é que sua vida acabou sendo contada
por um historiador australiano?
"Há um padrão
específico na maneira como a história dos negros de Nova York é contada: a
escravidão chega ao fim e deixa os negros muito pobres e, nos anos 1920, há o renascimento
do Harlem (explosão cultural do tradicional bairro negro da cidade). Certamente
muitos historiadores leram algo sobre Hamilton, mas provavelmente o deixaram de
lado, porque ele era visto como uma espécie de aberração", diz Shane
White.
Ainda é difícil
saber, por exemplo, como era exatamente a fisionomia de Hamilton, já que não há
fotografias, pinturas ou desenhos conhecidos dele. "Se qualquer uma delas
tiver sobrevivido, provavelmente foi catalogada como 'sujeito
desconhecido'."
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