Racismo,
miscigenação e casamentos interraciais no Brasil
Quando escrevo sobre racismo no
Brasil, muitos leitores (em profunda denegação) argumentam que não somos
racistas e citam como evidência nossa “miscigenação”, nossos casamentos interraciais.
Texto de Alex
Castro ,no Blogueiras Feministas
Um email típico que recebo:
aqui nos Estados Unidos, se voce é negro, voce pode
ser famoso, rico, o que for: quando você casar com a loira de olho azul de
Kennebunkport, Maine, NINGUÉM vai achar bonito. No Brasil, se você é
negro e pobre e é exatamente como o Ronaldo Fenômeno, voce é negro e
pobre. Quando voce vira famoso e rico (exatamente como o Ronaldo), voce é OK.Se
você casa com a loira, a família dela acha lindo! Se alguém disser que
isso é mentira, eu sou todo ouvidos pra explicação. Como não é, o Brasil é um
país classista, placist, acima de tudo. Agora, racismo e
preconceito existe no mundo todo, sempre existiu, sempre vai existir. Nao
existe lugar que é 100% racism/prejudice free. Mas usar isso como argumento é
não querer ver o problema principal. No país onde Pelé namorou a Xuxa
(a mulher mais branca do brasil, e segundo o Chico Buarque, a única branca) e
todo mundo achou bonito, digam: se Pelé fosse pobre, o que vocês achariam? Pois
é…
Eu devo mesmo entender tudo errado. Pra mim, isso
só prova que, no Brasil, o racismo está à venda.
* * *
Sim, existem muitos casamentos interraciais no
Brasil mas, na maioria deles (5 em 6, segundo o livro “Racismo à
Brasileira: Uma Nova Perspectiva Sociológica”, de Edward Telles), o cônjuge
negro tem status socioeconômico superior.
O fenômeno já foi estudado em outras sociedades tão
racistas quanto a nossa e, em inglês, se chama“status exchange in
interracial marriage“.
Basicamente, de acordo com Telles, indivíduos da
raça socialmente considerada inferior (no nosso país, os negros) mas que
estejam em posição de superioridade social, educacional ou financeira podem
“trocar” sua pretensa/percebida “inferioridade racial” e “superioridade
socioeconômica” pela pretensa/percebida “superioridade racial” mas “inferioridade
socioeconômica” dos indivíduos pobres da raça considerada superior (no nosso
país, os brancos).
Os dados matrimoniais revelados por Telles sugerem
que, devido ao racismo estrutural da nossa sociedade, os cônjuges negros teriam
um status percebido tão baixo no “mercado matrimonial” que seriam obrigados a
pagar um alto preço para obter casamentos “vantajosos” (“marry up”) com
parceiros mais claros. De um modo economicamente bem real, sua cor já seria uma
desvantagem tão grande que precisam de muitas outras vantagens compensatórias
(maior escolaridade, maior renda, etc) para poder competir em pé de igualdade.
Uma típica família brasileira branca, de classe
média baixa e incorporando todos os pressupostos racistas da nossa cultura,
talvez corresse a bala o garçom negro que ousasse dar em cima da filhinha
caçula, ou a doméstica negra querendo casar com o branquelo primogênito. Por
outro lado, um médico negro, uma profissional liberal negra, com carro na garagem
e TV de plasma, talvez não fosse tão ruim assim. Talvez.
A
segurança financeira e ascensão social percebidas talvez compensasse o tabu de
unir-se a alguém da raça considerada “inferior”.
Campanha publicitária da marca Benetton.
O Brasil é um país racista.
Quando digo isso, muitos leitores se sentem
atacados, como se eu tivesse chamado todos os brasileiros de racistas, mas uma
coisa não tem necessariamente a ver com a outra. Ênfase em
necessariamente. O fenômeno social descrito acima, por exemplo, é extremamente
racista, porém nenhum de seus atores poderia ser propriamente chamado de
racista.
Ninguém é obrigado a casar com ninguém. Não podemos
chegar para moça branca e brandir um dedo na sua cara, acusando-a de racista
por ter preferido o médico negro ao pardo carpinteiro que namorou antes. Não
podemos chegar para o médico negro e brandir um dedo na sua cara, acusando-o de
racista por ter se casado com uma branca pobre, ao invés de escolher “uma
mulher da sua cor”! Nenhuma dessas pessoas (necessariamente) é racista, ou é
canalha, ou está errada, ou merece repreensões. Observar os casos individuais
não resolve nada. As pessoas são livres e casam com quem querem.
Entretanto, quando olhamos para os números de modo
geral, é impossível não ver nesse fenômeno matrimonial um dos sintomas mais
gritantes do racismo brasileiro.
Somente o fato de o Brasil ter muitos casamentos
interraciais não prova que o país não é racista. Mas, pelo contrário, a
dinâmica desses casamentos comprova, mais uma vez, a sobrevalorização do branco
e a estigmatização do negro em nossa cultura racista.
* * *
De acordo com Telles, o elo mais fraco da corrente
são as mulheres negras, vítimas de preconceito duplo: por serem mulheres e por
serem negras.
Como existem mais mulheres do que homens, já existe
uma maior probabilidade estatística das mulheres ficarem mais solteiras que os
homens.
As brancas superam o deficit de homens brancos
casando com os pardos; as pardas, com negros, e assim sucessivamente ao longo
do espectro das cores, até que, obviamente, faltam negros para as negras – que
não têm literalmente ninguém “abaixo” delas.
Ou, pelo menos, é isso que sugerem as pesquisas do
sociólogo Edward Telles sobre a dinâmica dos casamentos interraciais no Brasil.
O número de mulheres brancas casando com homens pardos é muito superior ao
número de homens brancos casando com mulheres pardas, e assim sucessivamente.
Mais alguns dados extraídos de “Racismo à
Brasileira: Uma Nova Perspectiva Sociológica”: Mulheres brancas passam em média
65% de suas vidas casadas, contra 50% das negras; 51% dos homens negros se
casam com pessoas de outras raças, contra somente 40% das mulheres negras.
No Brasil, por causa da perversa hierarquia racial
e sexual, quem acaba sobrando na dança das cadeiras matrimonial são as negras.
Naturalmente, não se está dizendo que todas as pessoas
querem casar ou que o casamento seja a medida do sucesso de um ser humano, mas
somente que os dados de Telles indicam, mais uma vez, que de todos os players
do mercado matrimonial brasileiro, as mulheres negras são as que têm menos
opções, são as que casam menos e são as que passam menos tempo casadas.
* * *
O Brasil gosta de se pensar vivendo em uma
democracia racial. Adora bater no peito e citar que nossa miscigenação e nossos
casamentos interraciais provam que não somos racistas.
Mas até mesmo a própria dinâmica desses casamentos
interraciais só faz comprovar tanto o machismo quanto o racismo estruturais da
sociedade brasileira. São sempre os negros que terminam morrendo mais cedo,
sendo mais presos, ganhando menos. São sempre as mulheres que terminam
trabalhando mais, ganhando menos, sofrendo mais violências.
E, quando analisamos os números dos casamentos
interraciais no Brasil, cujo mercado matrimonial acontece num contexto
profundamente machista e racista, são as mulheres negras, duplamente subalternas,
que sofrem mais.
Para onde quer que olhemos, seja para os números
dos casamentos interraciais, para a composição racial dos universitários ou
para as estatísticas de vítimas de violência, todos os números só fazem
comprovar nosso racismo e nosso machismo.
Foto de Doug no Flickr em CC, alguns direitos
reservados.
Alguns brasileiros gostam de se enganar dizendo:
“Se fôssemos racistas mesmo não seríamos
miscigenados. Racistas são os norte-americanos que não se misturam.”
Não é verdade. Racistas são os dois.
No Brasil, a existência da categoria racial
“mulato” é tanto causa como consequência da ideologia de
mestiçagem/branqueamento, e não um resultado automático da mistura de raças. A
miscigenação, por si só, não cria “miscigenados” ou “mestiços” ou “mulatos” ou
qualquer que seja o termo inventado para classificar as pessoas que são produto
da união de indivíduos de raças diferentes.
Nos Estados Unidos, por mais deles que existam, são
simplesmente classificados de “negros”, e pronto. Taí o presidente Obama que
não me deixa mentir.
Não existe nenhuma contradição entre ser um “país
mestiço” e ser um país racista. Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos são
países profundamente mestiços e profundamente racistas.
A única coisa que muda é como cada cultura escolheu
chamar as pessoas de raça misturada: os norte-americanos chamam de “negro” quem
tem uma gota de sangue negro; os brasileiros inventaram inúmeros termos para
todas as matizes de cor.
O racismo é o mesmo.
* * *
Quando publiquei uma versão original desse texto,
muitos anos atrás, diversos leitores não conseguiram comentar.
Depois de algum tempo, descobri o motivo: para
evitar o spam de comentários, o sistema tinha uma lista de palavras muito
usadas pelos spammers e qualquer comentário com alguma delas não era publicado.
De repente, me bateu um estalo e fui conferir a
lista. Estava lá: “interracial”. Ou seja, qualquer leitor que tentou escrever
um comentário com essa palavra (o próprio tema do artigo!) não conseguiu
comentar.
Spammers usam muito essa palavra em seus anúncios
porque existem muitos sites pornôs sobre isso. E existem muitos sites pornôs
sobre isso (e seções inteiras nos sex shops norte-americanos só de filmes
pornôs interraciais) porque esse tema é recorrente e fortíssimo na cultura
racista norte-americana.
Ou seja, a própria presença da palavra
“interracial” na lista negra não seria coincidência: na verdade, ela ilustra o
próprio tema do artigo.
De acordo com os estereótipos racistas em voga nos
Estados Unidos (e no Brasil também), o negro seria sempre bestial e sexual,
desejado e temido, seja ele o negão bem-dotado ou a negona insaciável.
Não por acaso, a cultura racista norte-americana ao
mesmo tempo em que fetichiza muito mais o sexo interracial que a brasileira,
também apresenta muito menos casamentos interraciais.
Naturalmente, quanto mais a pessoa negra é
fetichizada como objeto sexual, menos ela é considerada como possível cônjuge.
Não é de se surpreender que todos esses
preconceitos racistas das sociedades brasileira e norte-americana façam com
que, nesses países, as pessoas negras (especialmente as mulheres) passem mais
tempo solteiras e tenham mais dificuldade para casar.
Todos os
dados desse texto saíram de:
Telles,
Edward E. Racismo à Brasileira: uma Nova Perspectiva Sociológica. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003. [Tradução de Race in Another America. The
Significance of Skin Color in Brazil.
Princeton: Princeton University Press, 2004]
Um dos
melhores livros sobre raça que já li: basicamente, um apanhado de números,
estatísticas e experimentos cujo objetivo é combater o “anedotismo” das
discussões sobre o assunto e, sobretudo, para dar argumentos aos que querem
debater, ou convencer os sinceramente confusos. Mas, verdade seja dita, não tem
nenhum dado ali que uma pessoa observadora já não pudesse ter deduzido sozinha,
somente por viver no Brasil e não estar em estado de denegação profunda.
Vale a
pena lembrar que o livro é de 2003 e, naturalmente, não leva em conta os dados
do censo de 2010. A situação está sempre mudando, algumas vezes até para
melhor.
Por fim,
o objetivo desse texto é somente apresentar alguns dados da pesquisa original e
algumas das conclusões de Telles sobre casamentos interraciais no Brasil. Se
você tem objeções quanto a esses dados, ou quanto às conclusões que podem ser
tiradas deles, recomendo ler o livro ou entrar em contato diretamente com o autor:etelles@princeton.edu
[+]
Larissa Santiago publicou uma série de três textos sobre o tema nas Blogueiras
Negras – Relações inter
raciais: I. Isso não é sobre amor; II. A Negação; III. O Desejo Construído.
[+] Racismo, a cor da
relação. Matéria
de Flávia Duarte publicada pelo jornal Correio Braziliense sobre as
dificuldades que mulheres negras enfrentam nos relacionamentos amorosos.
—–
Alex
Castro é um homem branco hétero cis (e também feminista, esquerdista,
ateu, praticante de bdsm e poliamor), que consciente do lugar de privilégio que
ocupa em nossa sociedade racista, machista, homofóbica, transfóbica e elitista,
tenta utilizar esses privilégios para melhor pesquisar, refletir e promover
pautas como feminismo, lutas sociais, consumismo, movimento negro, narcisismo,
escravidão, trabalho doméstico. Site: AlexCastro.com.br e Facebook.
Leia a matéria completa em: Racismo, miscigenação e casamentos interraciais no Brasil - Geledés http://www.geledes.org.br/racismo-miscigenacao-e-casamentos-interraciais-no-brasil/#ixzz3np3iMQIq
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Sou
negro. Casei com uma negra. Poderia ter seguido a lógica "racista
brasileira" por ter estudado um pouquinho e ter emprego bom, poderia ter
me casado com uma mulher branca. Porque isso? Porque no Brasil se voce estuda
em escola particular e frequenta cursos de inglês a chance de voce encontrar
outros negros e muito baixa. Voce fica inserido em um universo branco de gente
branca que te aceita por varios motivos , mas não sua negritude. Querem que
voce seja branco. O que acaba acontecendo e o negro se "embranquecer"
. Dai, buscar aquela menina branca, fora dos padroes ideais, que é rejeitada
pelos brancos e um caminho natural. Tive momento que quase cai nessa armadilha.
Não sou contra casamentos entre raças, sou contra a forma e os motivos que eles
acontencem no Brasil. O negro e tão massacrado, que, o bonito, o legal e se
misturar com os brancos e não manter a negritude. Eu tive a sorte de conseguir
me casar com uma negra linda. Foi a melhor coisa que me aconteceu. O negro no
Brasil não é estimulado a amar o negro. Ele é estimulado a despresar o negro.
Uma negra linda como a minha esposa poderia ter se casado com um branco
mediano, mesmo ela sendo linda! Eu pideria ter me cadado com uma branca
mediana, mesmo eu sendo "lindo". Mas, nos casamos em alto nível
negro. Sou sim a favor de casamentos afrocentrados.
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